Órfãs, exiladas com seus pais, sequestradas pelo regime e torturadas: livros retratam a violência da repressão contra crianças entre 1964 e 1985.Vencedor do Oscar de melhor filme internacional, o longa brasileiro Ainda Estou Aqui comoveu o mundo ao mostrar as vítimas indiretas de um regime ditatorial que perseguiu, torturou e matou opositores. Na trama, baseada na história real contada pelo escritor Marcelo Rubens Paiva sobre sua família, o foco não está direcionado ao engenheiro e político Rubens Paiva (1929-1971), assassinado pelas forças de repressão. Mas sim no impacto que o desaparecimento dele teve sobre sua família.
Em um esforço de pesquisa recente, cada vez mais histórias de violências contra crianças durante os anos do regime militar (1964-1985) têm sido trazidas à tona. Lançado nesta semana, Crianças e Exílio: Memórias de Infâncias Marcadas pela Ditadura Militar, traz 46 histórias narradas pelos seus protagonistas — hoje adultos que lidam com as lembranças traumatizadas dos momentos em que suas famílias foram perseguidas pela repressão.
"Ao trazer a perspectiva das crianças afetadas pela ditadura, um assunto ainda pouco tratado, o livro desmistifica, desromantiza a ideia do exílio", comenta a professora universitária e escritora Nadejda Marques, uma das organizadoras do livro, que também contém o seu relato. Ela é filha do militante Jarbas Marques (1948-1973), morto com outros cinco integrantes do grupo Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Especializada em direitos humanos, Nadejda Marques pesquisa e leciona na Universidade Wesleyan, nos Estados Unidos. Antes, ela publicou a autobiografia Nasci Subversiva. Com apenas 15 meses de idade, exilou-se com a mãe, Tércia Rodrigues Mendes (1951-2023). Primeiro viveu no Chile. Depois do golpe militar que instaurou a ditadura lá, em setembro de 1973, tornaram-se refugiadas políticas na Suécia. Então se mudaram para Cuba, onde passaram cinco anos.
"O exílio foi uma punição, uma violência. Contra as crianças e os pais dessas crianças, as famílias exiladas", comenta. "Minha mãe nunca me escondeu nada. Desde pequena, ela me contava como meu pai foi torturado e assassinado", recorda Marques.
Outra das autoras do livro, do qual também é organizadora, a matemática Helena Dória Lucas de Oliveira é professora na Universidade do Rio Grande do Sul. Filha do professor de história Antônio Lucas de Oliveira (1930-2016) e da enfermeira Ruth Dória Lucas, hoje com 90 anos, ela viveu uma década de sua infância e adolescência no exílio — no Chile, em Cuba e em Guiné-Bissau.
"Quando criança, eu via minha mãe e minha irmã cochichando, espiando pela persiana da janela da sala, conversas com ar de preocupação, durante o período que o pai esteve preso", recorda. "No Chile, vivemos momentos de perigo, de estarmos escondidos em uma casa que ainda estava em construção, tendo que brincar sem fazer barulho. Sair à rua, caminhando rápido, sem falar para não sermos identificados como estrangeiros…"
"Mas não compreendia como perseguição política. Pai e mãe não explicitavam o que estava acontecendo. Eu brincava, obedecia aos adultos, mas brincava, brincava em qualquer brecha de tempo que podia. Essa compreensão foi sendo construída com a idade", reflete Oliveira.
Violência, resistência e solidariedade
Para Marques, é importante ressaltar que as histórias de exilados têm em comum o fato de que essas experiências "não são apenas a expressão da violência de Estado", mas também a materialização de "resistência", além de ser uma demonstração de "solidariedade internacional". "Foi essa solidariedade internacional que, literalmente, salvou vidas, salvou nossas vidas. Cuidou das crianças, nutriu as crianças, educou-as de forma humanista. Essa ideia de solidariedade, eu penso, é extremamente relevante para o contexto do mundo atual."
O trauma ficou, sem dúvida. Nos últimos anos, reuniu-se em um grupo de WhatsApp 67 pessoas que foram crianças exiladas no período. Marques conta que todos foram convidados a integrar o livro, mas somente 46 toparam. Os demais, segundo ela, ainda não se sentem preparados psicologicamente para lidar com essa dor.
No texto de apresentação à obra, o jornalista Caco Barcellos ressalta que estes indivíduos foram "crianças escondidas, caladas, silenciadas, banidas, ultrajadas pela ditadura empresarial militar de 1964" e sofreram "perseguições brutais" simplesmente "por serem filhos dos militantes revolucionários de esquerda".
"Meio século ainda não apagou do cérebro daquelas crianças os gritos da tortura, nem o ruído do fuzilamento de seus pais, no dia em que se tornaram órfãs dentro de casa", diz Barcellos, enfatizando que "a maioria mantém viva a lembrança do banimento", da "expulsão do Brasil, no colo de seus pais".
Crianças sequestradas e torturadas
O jornalista Eduardo Reina pesquisou outro caso de violência perpetrada pela ditadura contra crianças: os sequestros. No livro Cativeiro Sem Fim, publicado em 2019, ele contou as histórias de 19 crianças que foram sequestradas e adotadas ilegalmente por famílias de militares ou de pessoas de alguma forma ligadas às Forças Armadas durante a ditadura.
De lá para cá, essa conta aumentou. "Desde o lançamento do livro, fui procurado por mais de 50 pessoas que também dizem ter sido vítimas desse crime cometido pelos militares na ditadura", comenta ele.
"Eram filhos e filhas de militantes de esquerda. Seus pais eram considerados inimigos da pátria", diz Reina. "Mas não bastava perseguir, prender, torturar, matar ou desaparecer com eles. Era necessário exterminar tudo e todos que estava ao seu redor. Por isso seus filhos eram sequestrados." Sua pesquisa também se tornou uma exposição online no Museu das Memórias (in)Possíveis.
Em 2014 a Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo publicou o livro Infância Roubada – Crianças Atingidas pela Ditadura Militar no Brasil. A obra trouxe relatos de 44 crianças que, filhos e filhas de militantes de esquerda, acabaram sendo presos junto com seus pais.
Um exemplo trágico contado na obra é a história de Carlos Alexandre Azevedo, o Cacá, filho do jornalista e cientista político Dermi Azevedo (1949-2021). Em 1974, ele tinha pouco mais de 1 ano e acabou sendo levado para as dependências do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), onde foi torturado com os pais, militantes de esquerda. Ele nunca se recuperou do trauma e, em 2013, suicidou-se. Tinha 37 anos.