À frente da Secretaria Especial de Cultura, a atriz Regina Duarte terá uma missão difícil, das mais delicadas que o setor já enfrentou desde a criação da pasta, em 1985. Apaziguar um meio de espíritos ressentidos deve ser o primeiro requisito para que ela consiga se movimentar antes mesmo de anunciar seus projetos. De um lado, boa parte da classe artística precisa se convencer de que Regina, mesmo a serviço de um dirigente com restrições a quem o critica ou não aparenta ter valores em que acredita, pode fazer um trabalho relevante. Do outro, um presidente, mesmo diante de uma classe crítica a seus atos desde antes de sua gestão, precisa ser convencido de que, em um país com quase 220 milhões de pessoas, é preciso pensar em cultura sem restrições ideológicas.

Essas são algumas das reflexões feitas por ex-dirigentes da pasta cultural ouvidos pela reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. Em geral, há nas falas um tom de respeito a Regina por sua história como atriz, com um ponto de destaque na série da Globo chamada Malu Mulher, quando Regina viveu o papel de Malu, uma mulher recém-divorciada derrubando tabus machistas em pleno início de anos 80. A vida real de Regina vai precisar de mais do que uma boa atuação, na opinião dos ex-ministros. “Ela já deu sinais de que discorda das posições de Roberto Alvim, mas não disse nada sobre as questões ligadas ao dirigismo cultural, à censura, às declarações homofóbicas, misóginas ou racistas. Como ela vai lidar com a adversidade cultural nesse cenário?”, pergunta Ana de Hollanda, ministra do governo Dilma Rousseff entre janeiro de 2011 e setembro de 2012.

“Em primeiro lugar, eu torço pela Regina Duarte para que ela consiga colocar ordem na casa”, diz Sérgio Sá Leitão, ministro da Cultura do governo de Michel Temer, em 2017, e atual secretário de Cultura do governo João Doria.

“Há uma série de instituições importantes que precisam funcionar, o Iphan, o Ibram, a Biblioteca Nacional, a Funarte.” Sá Leitão, último ministro da Cultura antes que a pasta se transformasse em secretaria, diz que tem esperanças de que Regina consiga convencer o presidente Jair Bolsonaro de que a área volte a entender cultura não só como subsídio a espetáculos mas também como potencial econômico. “Essa ficha, infelizmente, ainda não caiu.”

Ele sugere a Regina que ela não leve à mesa questões ligadas a segmentos específicos, como propostas a minorias, em um primeiro momento. “Ela precisa estabelecer um diálogo focado em política cultural mais geral para conseguir a maior unidade possível.” Mas como gerir democraticamente, por exemplo, os projetos cinematográficos viabilizados pela Ancine? Bolsonaro já manifestou que não autorizaria subsídios a filmes com “conteúdo pornográfico” como, segundo disse, o longa sobre Bruna Surfistinha.

Sá Leitão diz que, para isso, é preciso lembrar o presidente de que existe a Constituição. “Quando um presidente assume a Presidência do País, ele faz um juramento de respeito à Constituição. E a Constituição garante o respeito do poder público à liberdade de produção artística intelectual. Prefiro acreditar que Regina, com seu prestígio, vai fazê-lo entender isso.”

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Juca Ferreira, ministro da Cultura por duas vezes, a primeira entre julho de 2008 e dezembro de 2010 no governo Lula e a segunda, entre janeiro de 2015 e maio de 2016, no de Dilma Rousseff, é menos otimista. “Regina vai ser mais do mesmo em um governo que monta mecanismos de censura na cultura. Ela possivelmente será menos desastrada do que o antecessor Alvim, mas não será o suficiente.” Ele cita o Prêmio Nacional das Artes, anunciado por Alvim no vídeo em que imitou o ministro nazista Joseph Goebbels e lhe valeu a demissão do cargo, como uma “tentativa de manipulação da produção cultural”.

Segundo informações da secretaria, caberá ao novo secretário reavaliar a continuidade do prêmio. O Ministério Público Federal já recomendou a anulação do projeto que prometia distribuir mais de R$ 20 milhões para produtores culturais que seriam escolhidos pela pasta – uma prática vista como dirigismo cultural pelos opositores. Para Juca, os artistas devem “continuar a fazer o que vêm fazendo”. “Produzindo muito, mesmo nessas condições, e resistindo sempre aos ímpetos autoritários.”

“Regina Duarte é a última chance de Jair Bolsonaro na Cultura”, diz o cientista político Francisco Weffort, ministro da gestão cultural de Fernando Henrique Cardoso, entre 1995 e 2002. Seu pensamento é em respeito a uma provável tentativa do governo de apaziguar a área com um quadro que aceite um convite para fazer parte de seu governo ao mesmo tempo em que conte com algum respeito profissional da classe. “Se ele perder Regina, vai ficar sem nada. E, nesse momento, é importante para o Bolsonaro que ele reconquiste ao menos parte da classe artística. É a última chance que tem para fazer isso.”

Sua dica, então, é mais para Bolsonaro do que para Regina Duarte. “Ele deve dar liberdade para as ações de Regina, que o apoiou desde sempre. Regina, que tinha medo do Lula mas não tem de Bolsonaro, tem esse jogo difícil pela frente.” Uma briga de duração tão longa com o setor artístico, visto também como importante propagador político, pode trazer prejuízos na próxima eleição, diz Weffort. “E, nesse momento, a economia ainda vai mal, não é nada brilhante. Ele precisa então se aproximar dos setores culturais pelo menos até o momento em que as coisas melhorem na economia.”

Marcelo Calero passou pela pasta por pouco menos de seis meses em 2016, convidado por Michel Temer. Depois de denunciar pressões para rever um parecer técnico desfavorável a interesses pessoais do então ministro-chefe da Secretaria de Governo do Brasil, Geddel Vieira Lima, ele pediu demissão. Calero primeiro deseja “toda sorte do mundo” à atriz. “E que seja um trabalho em consonância com a enorme densidade de sua história artística.” “Agora”, segue Calero, “o que ela vai ter como desafio é, primeiro, o de marcar sua gestão dentro desse contexto Bolsonaro, um contexto de profundo antagonismo com a área cultural.”

Ele se alinha a Sá Leitão na dimensão econômica dos projetos culturais, uma visão que também norteou os projetos da equipe de Gilberto Gil, líder da pasta entre 1º de janeiro de 2003 e 30 de julho de 2008 durante a gestão Lula. Gil não quis se pronunciar ao jornal O Estado de S. Paulo. Ele apenas respondeu que o que tinha a dizer está na frase que distribuiu aos jornais há poucos dias: “Espero que a Regina veja a cultura do Brasil com os mesmos olhos com que eu e tantas outras pessoas vemos a bela figura dela”. Aposta no apaziguamento do setor e não dá palpites sobre política cultural, mesmo sendo algo que ajudou a transformar nos anos 2000. Marta Suplicy, ministra de Dilma entre 2012 e 2014, também disse que não queria se pronunciar.

Calero diz: “Sempre falo que a cultura deve ser vista como vetor social e econômico principalmente em um País tão diverso e com tanta riqueza de manifestações culturais, como é o caso do Brasil”. Ele faz um panorama rápido sobre a pasta. “Acho que a gestão Bolsonaro começa com uma visão muito profissional que foi dada pelo (secretário) Henrique Pires e, depois, no entanto, foi para esse viés cada vez mais ideológico.”

A dica que Calero deixa a Regina: reverter todas as nomeações da área feitas por Alvim. “Se não conseguir reverter essas nomeações, já começa sua gestão de maneira totalmente enviesada. Estou falando da Casa de Rui Barbosa, da Funarte, da Ancine, da Fundação Palmares, obviamente, e da Biblioteca Nacional. A revisão dessas nomeações é fundamental para que a gente saiba se, de fato, essa gestão vai conseguir trazer algo de novidade em termos de relacionamento com o setor.”

Sá Leitão, questionado sobre o que faria se fosse Regina Duarte, deixa um esquema que, mesmo básico, segundo ele, daria o recado de que as coisas voltaram a caminhar. Ela precisaria primeiro fazer diagnóstico dos projetos em andamento. Depois, uma avaliação do que deve ou não ser mantido e, por fim, um planejamento. “É importante envolver o maior número de representantes da sociedade nesse processo. Congresso, entidades do setor, secretarias estaduais. É fazer isso e estabelecer as metas.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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