A corrida pelas legislativas na Espanha – as primeiras que se repetem desde a volta da democracia em 1978 – teve início nesta quarta-feira em um clima de enfado político, que poderia acabar favorecendo a direita ante a divisão da esquerda.

A ilusão de uma mudança com que que muitos eleitores receberam o resultado dos comícios de 20 de dezembro caiu por terra no dia seguinte ao anúncio de novas eleições em 26 de junho ante a impossibilidade de qualquer aspirante ao poder formar governo.

“É um circo”, lamentava Marisa, uma aposentada de 81 anos, no centro de Madri, antes de comentar que não votava há algum tempo.

“Cada partido privilegiou seus interesses”, queixava-se Gabriela Pérez (34), funcionária de um bar, que votou na esquerda, lamentando que os partidos não foram capazes de entrar em um acordo para formar governo.

“Fracasso”, “naufrágio”, “impotência” estampam os jornais do país, ainda dirigido pelo governo em final de mandato do conservador Mariano Rajoy, que só pode gestionar mudanças menores, recordando a Bélgica, que esteve mais de um ano sem governo entre 2010 e 2011.

As últimas eleições permitiram a entrada ao Parlamento de dois novos partidos, Podemos (esquerda radical) e Ciudadanos (centro-direita), que prometeram resolver os problemas dos espanhóis: o desemprego, que afeta uma em cada cinco pessoas, e a corrupção.

‘Impossibilidade de acordo’

Mas nenhum dos dois soube evitar o bloqueio e lidar com um chefe de governo dialogando com os “antigos”: o conservador Partido Popular (PP) e o socialista PSOE, que dispunham respectivamente 123 e 90 cadeiras, frente aos 65 deputados do Podemos e os 40 dos Ciudadanos.

O líder socialista, Pedro Sánchez, que tentou uma aliança com o Ciudadanos temendo se tornar um refém da esquerda radical, responsabilizou o Podemos pelo fracasso, depois que este partido se recusou, em duas ocasiões, a apoiar o pacto PSOE-Ciudadanos, por considerá-lo liberal demais.

Pablo Iglesias “não representa o Podemos hoje”, disse, descrevendo-o como um homem “inflexível”. Na véspera, acusou-o de oferecer um “colete salva-vidas” à direita.

A clara divisão da esquerda enfraqueceu suas possibilidades reais de deslocar os conservadores, no poder desde 2011, apesar de ter obtido mais de 11,5 milhões de votos, frente aos 10,7 milhões para o PP e Ciudadanos.

Para estas novas eleições, a direita já anunciou que não vai mudar seu programa, focando na “estabilidade” e na continuidade dos esforços para reduzir o desemprego frente os “desvios” de partidos como o Podemos.

A esquerda continua centrada na redução da desigualdade, que se multiplicou por 14 durante a crise iniciada em 2008, segundo a organização Oxfam.

‘Eleitorado volátil’

“O eleitorado de esquerda se vê em uma encruzilhada: ‘voto útil sim, mas para quem?'”, destaca a socióloga Belén Barreiro, diretora do instituto de pesquisa MyWorld.

Para o PSOE, que defende sua proximidade com os centristas e moderados ou para o Podemos, que contempla uma aliança com a Izquierda Unida (eco-comunista) e poderia supor uma reviravolta para a esquerda?

É possível que esta dúvida acabe favorecendo a direita, sobretudo supondo uma maior abstenção.

“No último mês, observamos um excesso frente às encenações frustradas de acordos”, declarou à AFP um parlamentar conservador que preferiu se manter em anonimato.

Este risco poderia afetar de maneira mais incisiva o eleitorado jovem, que tende a votar mais nos novos partidos do que no PP, cujos eleitores são mais velhos e “fiéis”, afirmou.

“Também haverá eleitores que, ao ver o Ciudadanos tão próximo ao PSOE, voltarão a votar no PP”, estima.

Nesta quarta-feira, Rajoy destaca esta proximidade, recordando o apoio do Ciudadanos ao PSOE. “Estes meses ajudaram os espanhóis a situarem a todos”, assegurou.

Contudo, José Ignacio Torreblanca, diretor em Madri do Centro de Estudos Europeus, faz advertências contra as previsões ante um eleitorado muito “volátil”.

Nas últimas eleições, a “Espanha foi o país onde a transferência de votos (para os novos partidos)” se deu de forma mais alta, na frente da Grécia, Itália e Portugal, explica.

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