Tudo indica que a cidade de Nova York será governada por um jovem imigrante muçulmano, progressista e crítico de Israel, após primárias com sabor de referendo dentro de um Partido Democrata profundamente abalado pela vitória do republicano Donald Trump em novembro do ano passado.
Na noite de terça-feira (24), em meio a uma onda de calor, a maior cidade dos Estados Unidos sofreu uma convulsão política.
Zohran Mamdani, nascido em Uganda há 33 anos e praticamente desconhecido até alguns meses atrás, venceu por sete pontos (43% contra 36%) Andrew Cuomo, ex-governador do estado, que teve sua imagem manchada há quatro anos por acusações de assédio sexual.
Embora os resultados definitivos demorem alguns dias para serem divulgados devido ao complexo sistema de votação das primárias nova-iorquinas, o próprio Cuomo, que chegou a liderar as pesquisas com 30 pontos, reconheceu já na terça sua derrota.
Em seu primeiro discurso a seus apoiadores reunidos em um terraço de seu reduto no Queens, um dos bairros mais populosos e multiculturais de Nova York, Mamdani prometeu valorizar a classe trabalhadora da cidade e servir como modelo para o futuro de seu partido, abalado pela derrota de Kamala Harris para Trump em novembro.
Nos últimos dias e diante da ascensão do jovem democrata nas pesquisas, pesos-pesados como o ex-presidente Bill Clinton ofereceram apoio a Cuomo.
Esta votação foi “um claro referendo sobre o futuro do Partido Democrata”, diz o cientista político Lincoln Mitchell em uma análise pós-eleitoral.
“É uma má notícia para os democratas do ‘establishment’, mas pode ser benéfico para o conjunto do partido”, afirma, por sua vez, Andrew Koneschusky, ex-assessor democrata no Senado, à AFP.
Salvo uma enorme surpresa, Mamdani se tornará, nas eleições de novembro, o próximo prefeito de Nova York, reduto democrata por excelência. Ele concorrerá contra o atual prefeito Eric Adams, que se apresenta como independente; o republicano Curtis Sliwa; o também independente Jim Walden; e possivelmente o próprio Cuomo.
Além de prometer uma “vida digna” a uma classe média e trabalhadora afetada pelos preços proibitivos da habitação ou das creches em Nova York, o candidato tem propostas como aumentar os impostos dos ricos e críticas à guerra de Israel em Gaza, todas questões que explicam, em parte, sua vitória, segundo Mitchell.
“Mamdani não teria superado, e finalmente minimizado, os demais candidatos que não eram Cuomo nessa corrida se não tivesse sido ativo e um líder no movimento ‘Free Gaza'”, que é “onde está a energia da esquerda em Nova York e a nível nacional”, explica o cientista político.
Em 2023, apresentou um projeto de lei para acabar com a isenção fiscal das organizações beneficentes de Nova York vinculadas aos assentamentos israelenses que violam o direito internacional, que não prosperou. Também expressou seu apoio ao movimento ‘Boicote, Desinvestimento e Sanções’, que, no ano passado, esteve à frente dos protestos em muitas universidades americanas.
Filho do historiador Mahmood Mamdani, autor da obra “Saviors and Survivors” sobre a guerra em Darfur, no Sudão, e da cineasta indiana-americana Mira Nair, conhecida por “Salaam Bombay”, Mamdani recebeu o apoio de políticos como Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez.
Carismático, Mamdani realizou uma campanha de corpo a corpo e nas redes sociais com milhares de voluntários, “profundamente comprometidos e capazes de conversar com fluidez e inteligência com os eleitores”, diz Mitchell.
“Há uma divisão geracional no partido. Fui de casa em casa durante a campanha, e com pessoas de 50 anos ou menos foi muito fácil encontrar terreno comum para os grandes desafios”, conta à AFP Victoria Marín, de 42 anos, voluntária na campanha de Mamdani.
No entanto, para o jornal conservador nova-iorquino The New York Post, essas não são boas notícias. Em uma manchete de página inteira nesta quarta-feira, publicou apenas acrônimos significativos: “NYC SOS”.
“Quem vai salvar a cidade após a vitória de um radical de esquerda na primária democrata?”, perguntou o periódico.
Em meio à polarização do país após a vitória de Trump e suas políticas anti-imigração e contra a liberdade de expressão, o presidente republicano, depois de participar da cúpula da Otan em Haia, atacou Mamdani.
“Finalmente aconteceu, os democratas passaram dos limites. Zohran Mamdani, um lunático 100% comunista, acaba de ganhar as primárias democratas e está a caminho de se tornar prefeito. Já tivemos esquerdistas radicais antes, mas isso está ficando um pouco ridículo”, afirmou. “Sim, este é um momento crucial na história do nosso país!”
Antes, o senador republicano texano Ted Cruz havia convidado os nova-iorquinos “que não são comunistas” a fugirem da metrópole e se refugiarem no Texas.
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