A pista de atletismo pintada em uma rua tranquila no bairro de Itaquera, na zona leste de São Paulo, chama atenção de quem passa. Lá, um ex-atleta universitário realizou o sonho de proporcionar a inclusão social para jovens da periferia através do esporte. O projeto “Correndo para o Futuro”, da Associação Esportiva e Cultural Kauê, reúne crianças e adolescentes que buscam uma vida melhor. Em 21 anos de história no asfalto paulistano, seu trabalho já atraiu olhares de várias partes do mundo.

“Usain Bolt falou que eu sou o cara”, conta o fundador da associação, Francisco Carlos da Silva. Logo após pintar uma pista de cinco raias e 200 metros de comprimento, que simula um traçado oficial com a metade do tamanho, o projeto fez tanto sucesso que chamou a atenção de gente ligada ao esporte. Entre as ilustres visitas que recebeu, uma foi a do ex-velocista jamaicano.

Bolt, que ao longo da carreira conquistou oito medalhas de ouro olímpicas e outras 11 em Mundiais de Atletismo, visitou o projeto no início deste ano e afirmou que nunca viu em nenhum outro lugar do mundo o trabalho feito em Itaquera. As palavras do jamaicano foram tão motivacionais para Francisco que suas frases ocupam um cartaz localizado na sede da associação, onde recebeu a reportagem do Estado.

“Aqui também vieram representantes do Barack Obama (presidente dos Estados Unidos entre 2009 e 2017). Recebemos o consulado dos Estados Unidos, os atletas Marílson Gomes dos Santos e Alan Fonteles, o jogador Giovani dos Santos, e tivemos até homenagens da seleção americana e repercussão em países como Itália e Holanda”, conta Francisco. “Recebi muito reconhecimento internacional e muitas vezes sou órfão do País onde plantei raiz, constituí minha família e estou desenvolvendo um projeto de inclusão social para mudar a vida das pessoas da região.”

Em aulas ministradas às segundas, terças e sextas, Francisco reúne de 50 a 60 crianças e adolescentes entre 3 e 15 anos para praticar atletismo. Por volta das 19 horas, os alunos começam a lotar a rua Nicolino Mastrocola. Por lá, são colocados cavaletes para sinalizar aos carros que passam pelo local que o treinamento dos jovens vai começar.

O cenário acaba mudando o ambiente do bairro e os jovens atletas se sentem preparados para enfrentar os desafios que ultrapassam as barreiras das dificuldades diárias. “O meu sonho era só montar um time de futebol e dessa equipe nasceu uma entidade que é respeitada fora do Brasil”, revela Francisco, que criou a associação a partir de um time de futsal para homenagear o seu primeiro filho. Naquela época, ele percebeu que o esporte poderia mudar sua vida e que deveria passar essa lição adiante.

“Não temos essa pista por vaidade, mas pela necessidade. Eu não tenho orgulho de ter uma pista de atletismo pintada na rua, mas ela conta a nossa história. Não vou dizer que esse seja o cenário ideal, porque não é possível trabalhar em alto rendimento em uma pista pintada no asfalto, mas, infelizmente, a nossa necessidade de ter uma pista oficial não depende do poder das minhas pernas ou da força do meu coração, que é o que eu uso para tentar mudar a vida dessas crianças”, explica.

O ex-atleta conta que recebe ajuda de empresas privadas, mas não tem nenhum patrocínio fixo ou auxílio de órgãos públicos. “Procuramos mostrar para as pessoas que vale a pena insistir e acreditar no projeto de inclusão social e que isso vai gerar retorno algum dia. Quando as empresas passam a acreditar nisso, elas estão acreditando nas pessoas. Acreditar nas pessoas faz com que as coisas aconteçam na vida.”

Em sua sede, ele tem custos mensais que somam cerca de R$ 1.500, contando água, luz e Internet. Francisco também precisa pagar as inscrições dos atletas nas competições e a troca de materiais esportivos. Além do projeto de atletismo, ele mantém trabalhos com artesanatos, reforço escolar, laboratório de inclusão digital e academia aos moradores da comunidade. Faz de tudo um pouco.

Apesar dos custos, ele explica que o próprio esporte ajuda a manter sua associação. “Hoje temos muitos atletas de alto rendimento que não pagam inscrições. Sobre os materiais esportivos, esse é o menor dos nossos problemas, pois recebemos muitas doações. Antes, eu chegava a tirar o meu próprio tênis do pé para dar ao aluno. Agora, você vê garotos que não têm o que comer em casa, mas andam com um tênis de R$ 300 para treinar. Isso é doação, ajuda de amigos e empresas. Apesar de não ter nenhum patrocínio oficial com alguma marca específica, temos reconhecimento”, comenta.

Além disso, Francisco recebe a ajuda de diversos ex-alunos. “Quando eles ganham prêmios, chegam aqui e ajudam quem está começando. Temos um acordo de que tudo de bom que eles recebem, eles precisam transmitir para as outras pessoas. Se você sentiu na pele a dificuldade, no dia que você tiver condições você vai oferecer isso e vai devolver para aqueles que estão perto de você. Essa é a realidade de uma comunidade”, afirma.

“Eu acredito que por mais impossível que sejam os nossos sonhos, por mais obstáculos que precisamos enfrentar, se você for determinado, acreditar e transmitir valores, vão ter outras pessoas que vão sonhar com você. Eu não tinha uma sede, não tinha uma pista, ainda não tenho, mas ofereço o que muitos clubes não conseguem oferecer. Aqui nós dividimos quando não tínhamos nem a capacidade de multiplicar”, complementa Francisco.

ROTINA E SONHOS – Aos 48 anos, Francisco divide a sua rotina entre o trabalho voluntário na associação e a própria empresa de prestação de serviços de informática. Ele trabalha de segunda a sexta em horário comercial, três vezes por semana acompanha os treinamentos dos jovens e aos finais de semana ele está presente nas competições. “Muitas vezes, eu faço só uma refeição por dia. Mas penso “tudo bem, antigamente, eu não tinha nem o que comer”. Então, o que me alimenta é a vontade de transformar a vida das pessoas e fazer com que elas se sintam motivadas”, ressalta.

O seu próximo projeto é criar uma pista de atletismo de 400 metros, fora do asfalto, que custaria em torno de R$ 1 milhão. Ao lado da sua sede, fica localizado o Parque Linear, considerado o “local perfeito”. “Nós não vamos abandonar a rua, mas o asfalto pintado ficaria como o símbolo do nosso projeto.”