Quando a informação que Jair Bolsonaro poderia ter contraído o coronavírus surgiu ontem à noite, eu mesmo não resisti à tentação de perguntar: “E daí?”

Reconheço que foi  uma resposta pueril, errada em muitos sentidos. É claro que o fato de o presidente ter o vírus importa, e muito.  Ele é um paciente com poder de ditar políticas públicas.

A primeira questão era saber se a condição de contaminado mudaria de alguma forma o discurso e o comportamento de Bolsonaro.

A resposta já está dada. O presidente falou há pouco com a imprensa diante do Palácio do Alvorada. Ele não aprendeu nem esqueceu nada. Sua atitude não mudou de maneira relevante.

Bolsonaro estava de máscara. No momento em que tirou o adereço, para deixar que as câmeras mostrassem sua aparência, afastou-se alguns passos dos jornalistas. “Vou seguir os protocolos médicos como qualquer cidadão”, disse ele.

É pouco, muito pouco.

Com ou sem coronavírus, a doença ideológica de Bolsonaro continua igual

O presidente não pediu desculpas por ter servido como vetor de propagação da Covid-19 nas semanas que antecederam a manifestação da enfermidade. Ele andou sem máscara por toda parte. Foi a Santa Catarina, observar os estragos causados pelo ciclone que varreu o Estado. Estava sem proteção. Encontrou-se com o embaixador americano. Estava sem proteção. E assim em outros compromissos.

Sua demonstração de cuidado na manhã de hoje foi pontual. Sua verdadeira crença quanto à adoção de medidas protetivas se manifesta nos recentes vetos à legislação federal sobre uso de máscara em locais de trabalho e outros ambientes fechados.

Bolsonaro também disse que usou duas doses de cloroquina, que teriam baixado sua febre e melhorado a sua sensação geral de bem-estar. Fica clara, assim, a intenção de continuar sendo o garoto propaganda do seu óleo de cobra particular.

É que a esta altura, Bolsonaro talvez não tenha mesmo outra alternativa senão continuar “vendendo” a cloroquina. Afinal, ele transformou sua produção em política de governo. Fez o Exército comprar insumos para fabricá-la, aparentemente por valores elevados, e milhões de comprimidos foram distribuídos pelo país. É bem provável que esse enorme estoque perca a validade antes que possa ser utilizado no tratamento das doenças que sabidamente respondem à cloroquina, como malária e lúpus.

É importante repetir: ainda que Bolsonaro use a cloroquina e se recupere bem, isso não vai servir de prova sobre a eficácia do remédio. Essa prova só pode ser dada por pesquisas médicas. As certezas do presidente não lhe autorizam assinar receitas farmacêuticas para quem quer que seja.

Assim como não se tornou mais cuidados ao recomendar o uso do remédio, Bolsonaro não deixou de espalhar outros tipos de desinformação. Continuou insistindo que jovens têm chance “próxima do zero” de sofrer ou morrer com a doença. E voltou a criticar as medidas de isolamento social.

Bolsonaro se disse constrangido ao reconhecer que tem mais de 100 funcionários à sua disposição no Palácio da Alvorada, entre os quais os membros de uma equipe médica em plantão permanente. É algo com que nenhum outro brasileiro exposto à Covid-19 pode contar. É algo com que os pobres do SUS nem sequer sonham.

Mas suspeito que a certeza de dispor de um pronto atendimento médico não é o fator determinante na reação do presidente ao diagnóstico de infecção com a Covid-19. Trata-se mais de uma combinação de ignorância convicta, filosofia de vida e cálculo político.

A ignorância se expressa na rejeição à ciência. Os exemplos estão acima.

A filosofia de vida é o que eu chamaria de “estoicismo do estande de tiro”. O estoicismo ensinava, na Antiguidade, que não é sábio desesperar-se com o inevitável, que é preciso aprender a tolerar com serenidade os reveses da vida. Seu grande nome foi Sêneca.

O estoicismo do estande de tiro não se ocupa apenas de minimizar os riscos inerentes a uma situação. Trabalha para aumentá-los. Se a doença existe, vamos ampliar sua incidência não usando máscaras. Se armas nas mãos de bandidos matam, vamos facilitar que cheguem a eles reduzindo as possibilidades de rastreamento.

O cálculo político é que uma mudança de discurso neste momento deixaria desorientados os bolsonaristas fieis. Além disso, tenderia a jogar definitivamente no colo do presidente os quase 70 mil mortos do coronavírus no Brasil. Melhor não…

A ignorância, a filosofia e o cálculo tornam difícil escapar ao impulso de responder na mesma moeda quando Bolsonaro é a vítima da doença: “E daí?”

Mas não é o caso. Vamos torcer para que Bolsonaro se recupere. A melhor imunização contra o presidente e os seus cúmplices autoritários é a que já está em curso, e vem da política e das instituições. Trata-se de conter o bolsonarismo, derrotá-lo exemplarmente nas próximas eleições – ou impedi-lo, se assim for indispensável.