GUERRA Em todas as cidades, a cena se repete: a polícia tenta, em vão, impedir os ataques dos extremistas. Eles já controlam militarmente mais da metade do país (Crédito: Hoshang Hashimi )

Começa a surgir uma nova geopolítica no maior continente do planeta — o asiático. Boa parte desse contorno nasce pelas armas e o terror, a outra parte vem por meio de uma diplomacia que traz sorrisos no rosto e bomba no bolso. Trata-se, sobretudo, do jogo de interesses que aproxima o governo chinês do grupo fundamentalista islâmico Taleban, que, na terça-feira 3, já ocupava cerca de dois terços do território do Afeganistão — a ocupação teve início na primeira hora em que o presidente dos EUA, Joe Biden, ordenou em abril a retirada das tropas norte-americanas do país, onde elas estavam desde 2001. Até quando China e Taleban se entenderão, isso é imprevisível, tanto quanto são imprevisíveis todas as parcerias que se dão calcadas em profundo pragmatismo — e somente no pragmatismo. Mas o fato é que, no presente, essa paupérrima região do mundo pode ganhar novos (e provavelmente péssimos) recortes políticos, sociais, bélicos e econômicos. Além da China, igualmente outros países atuam para ocupar o vácuo deixado pela a saída das tropas, e todos eles são adversários políticos dos EUA.

Ao longo da semana passada, o Taleban avançou sobre algumas das principais cidades do Afeganistão, fazendo desse avanço a sua maior ofensiva na área urbana do país. Foguetes foram lançados nos aeroportos de Kandalar e Herat, dois dos maiores centros nas áreas administrativa e econômica. A guerrilha conseguiu ocupar significativos centros, já que vastas regiões rurais e pelo menos seis cidades encostadas em cruzamentos de fronteiras já estavam rendidas.
Os EUA invadiram o Afeganistão em 2001, em resposta ao atentado às Torres Gêmeas, no fatídico 11 de setembro, e baniram o Taleban do poder. Os fundamentalistas retornam, dessa vez, justamente com o fim da ocupação norte-americana, e o presidente do Afeganistão, Ashraf Ghani, criticou diretamente Biden, na semana passada. Segundo Ghani, o processo de saída dos soldados dos EUA, em nome de um acordo de paz, ocorreu rápido demais: “Todos os planos foram apressados”, disse ele. “Não apenas falharam na tentativa de pacificação, mas criaram dúvidas e ambiguidades entre a população”.

O MULÁ E O MINISTRO Baradar, cofundador do Taleban,
e Wang Yi: pragmática parceria e jogada econômica (Crédito:Li Ran)

Uma das consequências mais visíveis, e já cruéis, é a diáspora do povo afegão, fugindo das garras do Taleban. Inúmeras famílias, desalojadas pelos ataques armados, passaram a viver nas ruas e tentam conseguir passaporte para viajarem. “Eu avisei Joe Biden. Era evidente que ocorreriam sérios problemas”, concluiu Ghani. Até a terça-feira, a Missão de Assistência da ONU anunciava que, entre maio e junho, tinham morrido pelo menos setecentos e oitenta e três civis afegãos; e aproximadamente outros dois mil estavam feridos. No campo diplomático, representantes da cúpula do Taleban, chefiados por Abdul Baradar, um dos fundadores do grupo, reuniram-se na China com o ministro das Relações Exteriores, Wang Yi. Para o Taleban, que já manteve boas relações com os chineses antes de 2001, a renovação desse apoio é essencial para que a organização seja legitimada no poder — ainda que o divida, no início, com governo atual, aliado dos EUA. Para a China, por sua vez, o Afeganistão, nas mãos do Taleban, é garantia de que não haverá no país movimentos extremistas contrários ao governo chinês. Some-se a isso interesses econômicos na ampliação das chamadas “rotas da seda”. Para ambas as partes, portanto, o respeito recíproco é bom negócio, pelo menos por enquanto.

Tão cortejado e tão solícito

Com interesses diversos, há, no entanto, outros países cobiçando a região — e o Taleban não se faz de difícil, de forma oportunista vai tecendo acordos com todos aqueles que o procuram: acordos moldáveis feito água. Rússia, Índia, Irã e Paquistão estão de olho em um Afeganistão sem tropas norte-americanas. Embora Moscou considere o Taleban uma organização ilegal, recebeu três de seus representantes. Na pauta das reuniões estava a reivindicação de uma garantia que foi dada pela organização fundamentalista: a de impedir que o Estado Islâmico atue com seu terrorismo em território afegão. O chanceler russo, Sergey Lavrov, desfez-se em delicadezas: “integrantes do Taleban são pessoas razoáveis”. Ainda assim, a Rússia promoverá em breve manobras militares em países que fazem fronteiras com o Afeganistão, em uma intimidatória demonstração de força; e aposta que o grupo estará à frente do país em parceria com o governo, até porque sua capacidade de administração é bastante precária. Quanto aos líderes da Índia, abriram eles negociações, espreitando duas áreas de interesse: o Taleban pode impedir que movimentos armados se organizem contra os indianos, e deve, ainda, cuidar com austeridade dos investimentos da Índia no Afeganistão. Jamais, desde a sua formação, em 1994, o Taleban foi tão cortejado; e jamais foi tão solícito. Tudo são flores — flores que disfarçam as pontas dos canos de fuzis.