Um goleiro em campo com meia-calça, doses de bebida alcoólica no vestiário, jornais para forrar os pés. Todos os detalhes dos bastidores dos raros jogos oficiais disputados sob neve no Brasil estão em um livro recém-lançado pelo escritor catarinense Henrique Porto. Após quatro anos de pesquisa e mais de 10 entrevistas, o autor coletou na obra Pé-frio, futebol e neve no Brasil (Design Editora) as curiosidades vividas nas oito partidas com registro confirmado de nevasca.

Todos esses jogos foram disputados na década de 1970 no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina e valeram pelos respectivos campeonatos estaduais. Das oito partidas sob neve, seis foram no mesmo dia. Em 30 de maio de 1979, uma forte onda de frio fez as temperaturas despencarem. “Foi um ano de inverno bem atípico. Chegou a nevar no deserto do Saara e até em Las Vegas, nos Estados Unidos. No Sul, a população até duvidou da previsão do tempo e muitos times sequer estavam preparados para tanto frio”, contou o escritor ao Estadão.

Para reconstruir essas histórias, o autor pesquisou em arquivos de jornais da época e entrevistou jogadores e torcedores presentes aos estádios para levantar as informações sobre as condições climáticas tão raras e adversas. Uma curiosidade é que duas dessas partidas tiveram o mesmo zagueiro presente na escalação. Muito antes de virar um técnico vitorioso, Luiz Felipe Scolari esteve em campo pelo Caxias em um jogo disputado na neve em 1978 contra o Cruzeiro-RS e no ano seguinte diante do Grêmio Bagé-RS.

Em entrevista ao autor do livro, Felipão contou o quanto sofreu com o frio e como no vestiário durante o intervalo do jogo o time buscava se aquecer com uma bebida especialmente preparada para o inverno. “Tomamos café preto com graspa porque lá em Caxias o costume é tomar graspa. Aquilo era forte, chegávamos a ficar com as orelhas e o nariz vermelhos. Era horrível, mas dava ânimo para entrar novamente em campo”, contou. A graspa é uma espécie de pinga feita à base de uva. O teor alcoólico chega a 60%.

Quem se aventurou a disputar os outros jogos sob nevasca também tinha de buscar algumas artimanhas para minimizar o frio. “Os jogadores sofriam com as roupas. Era preciso colocar dentro da chuteira jornais e sacos plásticos para esquentar os pés. Teve jogador que usou camisa de lã por baixo. O caso mais interessante é o do goleiro do Criciúma, que comprou uma meia-calça para usar por baixo do uniforme. Era comum os times tomarem no vestiário café com conhaque para se esquentar”, contou o escritor.

Os jornais da época chegaram a relatar a temperatura com até -3ºC nos jogos disputados sob neve. Todos esses encontros tiveram até a presença de corajosos torcedores. Algumas dessas testemunhas foram entrevistadas pelo autor e relataram que o principal problema na ocasião foi conseguir enxergar a partida diante da tempestade e da bola branca perdida em meio aos flocos que caídos no gramado.

“Em geral o primeiro tempo dos jogos era até interessante. Depois o campo virava um lamaçal por causa da neve e prejudicava o futebol”, contou o autor. No livro, ele separa um capítulo para cada uma das partidas e conta, além das condições climáticas, como foi o jogo. Fora as oito partidas narradas, o escritor cita um amistoso de 1968 entre Juventude e Fluminense, em Caxias do Sul. A partida é considerada uma dúvida pois enquanto o historiador do clube gaúcho sustenta que houve neve, um jogador do time carioca defende que não houve tempestade.

Confira os jogos disputados sob neve no Brasil:

07/07/1975 – Juventude (RS) 2 x 0 Internacional-Santa Maria (RS)

12/08/1978 – Caxias (RS) 2 x 2 Cruzeiro (RS)

30/05/1979 – Chapecoense (SC) 3 x 2 Criciúma (SC)

30/05/1979 – Esportivo (RS) 0 x 0 Grêmio (RS)

30/05/1979 – Caçadorense (SC) 3 x 1 Palmeiras (SC)

30/05/1979 – Caxias (RS) 1 x 0 Grêmio Bagé (RS)

30/05/1979 – Internacional-Lages (SC) 1 x 1 Avaí (SC)

30/05/1979 – Gaúcho (RS) 0 x 0 Farroupilha (RS)