O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, recorre ao legado dos antecessores do cargo e considera intervir em um país latinoamericano. Em sua mais recente empreitada internacional, o republicano acionou a CIA (Agência Central de Inteligência) contra a Venezuela e afirmou estudar ataques terrestres contra cartéis de drogas na região.
Uma invasão ao país de Nicolás Maduro seria o apogeu do que se iniciou em agosto de 2025, data na qual uma esquadra de navios militares estadunidenses foi mandada para o sul do Caribe, perto da costa da Venezuela, com cerca de 4,5 mil soldados. A justificativa foi de que a ação contemplava uma ofensiva ao tráfico de drogas e cartéis criminosos na região.
Inimigo declarado de Trump, Maduro recebeu a notícia classificando o suposto combate ao narcotráfico como “falso pretexto para impor políticas intervencionistas na América Latina e no Caribe”.
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As semanas seguintes foram marcadas pela intensificação de ameaças, incluindo divulgação de recompensa milionária por informações que levassem à prisão de Maduro – quem Trump acusa de liderar o Cartel de los Soles. Entre setembro e outubro, as forças estadunidenses também deflagraram uma série de ataques mortais em barcos venezuelanos, sempre sob a alegação de combate às drogas.
A autorização, em 15 de outubro, de operações secretas da CIA na Venezuela – além da presença de frotas e helicópteros norte-americanos na costa do território latino – remonta a outros momentos da história dos EUA, conhecidos por utilizar a própria potência militar para derrubar regimes de países pelo globo.
Segundo o próprio presidente norte-americano, as ações autorizadas podem incluir “operações letais”, o que corrobora para a crítica de analistas internacionais de que a ofensiva de Trump atende à interesses aquém do combate à substâncias ilícitas.
Além do narcotráfico
De acordo com o professor de Relações Internacionais da PUC-SP e da FAAP Laerte Apolinário, historicamente, os EUA têm usado o combate ao narcotráfico como um pretexto político para justificar ações com objetivos estratégicos mais amplos na América Latina.
O mesmo argumento foi mobilizado na Colômbia, no Panamá e em outros países, sempre associado às disputas de influência e segurança regional. O especialista explica que, no caso da Venezuela, o discurso antidrogas cumpre a função de legitimar medidas coercitivas e operações militares.
“Na prática, essas medidas visam enfraquecer o regime de Maduro e ampliar a presença norte-americana em uma área de grande relevância energética, em função das grandes reservas de petróleo venezuelanas e de sua proximidade geográfica com o mercado americano”, aponta.
Um dos principais interesses do governo americano na Venezuela se dá pelos recursos naturais da região, que reafirmam controle estratégico de atividades.
“A questão do narcotráfico existe, claro, mas é instrumentalizada. O foco real está na dimensão geopolítica: garantir acesso a uma das maiores reservas de petróleo do mundo, conter a presença russa e chinesa na região e reforçar a narrativa de que Washington continua sendo o ator dominante no hemisfério”.
Segundo o coordenador do grupo de Análise de Estratégia Internacional da USP (Universidade de São Paulo) Alberto Pfeifer, a principal diferença entre a ação de Trump atual e as intervenções americanas anteriores reside no gradualismo e na velocidade da escalada das operações.
A ofensiva na Venezuela em 2025 é caracterizada como gradual, em uma escalada paulatina das ações – ainda que com objetivo final de derrubar Nicolás Maduro. Em contraste, os eventos recentes de derrubada de presidentes na região, como os que ocorreram em Granada e no Panamá, foram ações súbitas, decisivas e rápidas.
Pfeifer destaca que a abordagem lenta, porém, tem uma implicação prática importante: “permite a Nicolás Maduro encontrar maneiras de se evadir da Venezuela, se for o caso”, diz.
Narrativa contra Maduro
Ao assumir que Nicolás Maduro é responsável por um dos maiores cartéis de droga venezuelano, o governo dos EUA automaticamente associa a luta contra o narcotráfico à derrubada do regime madurista, explica Alberto Pfeifer.
Segundo o professor, um ponto decisivo em relação à Venezuela diz respeito à visão internacional sobre o regime de Maduro, ainda muito condenado por autoridades globais.
“A eleição recente de Nicolás Maduro foi totalmente condenada pela comunidade internacional, observadores externos, neutros e é considerado um regime autoritário, antidemocrático, que ofende os direitos humanos e prende opositores políticos.”
A professora de Relações Internacionais da UNIFESP Regiane Bressan, porém, indica que um verdadeiro combate ao narcotráfico dependeria de uma aliança global de esforços complexos, o que reforça ao pensamento de que Trump usa a guerra às drogas como pretexto para atuar contra Maduro.
“Além disso, o narcotráfico não estaria localizado apenas na Venezuela, então existe muito mais um interesse dos EUA em derrubar o governo de Maduro do que qualquer outro objetivo”, pontua a professora.
Bressan também lembra que, ao declarar ofensiva contra os cartéis de drogas, Trump não precisa da aprovação do Congresso americano para movimentação bélica. Do contrário, se ele anunciasse ataques à Venezuela de maneira explícita, ele precisaria de tal apoio legislativo.
CIA e o estereótipo de ‘terroristas’
A entrada da CIA – agência de inteligência norte-americana – na Venezuela teve função de agravar a crise e dar mais peso à possibilidade de interferência na região. Alberto Pfeifer explica que o órgão é um dos principais braços do governo americano para atuar no exterior, contemplando Forças Armadas, diplomacia e Serviços de Inteligência.
“Autorizada, [CIA] fará ações conforme o interesse nacional americano e o combate às organizações criminosas transnacionais”, diz.
Para o professor Laerte Apolinário, a participação da agência de inteligência marca uma “escalada qualitativa das tensões”.
“Passamos de sanções e ações navais contra embarcações suspeitas a uma fase em que os EUA reconhecem e autorizam ‘operações irregulares’, o que muda a natureza do confronto”, pontua.
Apolinário destaca que não se trata mais apenas de policiamento marítimo, mas de uma atuação direta de serviços de inteligência com potencial para ações letais, captura, infiltração e, em último caso, operações que podem desestabilizar o poder interno.
“Essa entrada amplia o risco de incidentes que fogem ao controle público e reduz os freios legais e diplomáticos habituais”.
Para endossar ações contra o país de Maduro, as forças americanas se aproveitam do estereótipo latinoamericano – semelhante ao que já ocorre com árabes e muçulmanos. Ao criar a imagem de terroristas (os próprios traficantes venezuelanos foram batizados de “narcoterroristas”), a CIA também legitima ações de combate direto, estimulando a desumanização daquela sociedade.
Para o professor da PUC-SP e da FAAP, além de moralizar a intervenção – promovendo a ação como ofensiva ao crime e não contra um governo soberano – a divulgação de estereótipos mobiliza apoio doméstico, na que angaria aprovação pública da população dos EUA acerca de um inimigo comum.
“Além disso, [o rótulo de terrorista] reduz o custo internacional do uso da força ou de operações secretas, porque são vendidas como ações de segurança internacional, não como intervenção política. Esse quadro retórico facilita ataques, sanções e operações secretas de forma unilateral”, completa Apolinário.
Marco Rubio: latino dissidente

Marco Rubio
Marco Rubio, Secretário de Estado, apesar de ser uma das principais vozes contra a presença de estrangeiros nas terras estadunidenses, é de família cubana.
Diferente do Brasil, onde identidades étnicas são muitas vezes definidas pela aparência e contexto social, os EUA utilizam uma classificação racial chamada “one drop rule” (regra de uma gota). Essa convenção social determina que qualquer pessoa com parentes de grupos étnicos “não brancos” é automaticamente classificada como pertencente àquele grupo. Nesse sentido, qualquer pessoa com ascendência latina poderia ser considerada, pela régua dos EUA, latinoamericana.
Rubio tem sido uma voz importante desta abordagem “linha dura” em relação à América Latina nos círculos de Política Externa americana. Como secretário de Estado – e figura política com trajetória anti-Maduro – ele reconfigurou a narrativa para enfatizar o crime organizado e o risco para os EUA, ajudando a transformar preocupações de segurança em justificativa para medidas punitivas e operações mais agressivas.
A professora Regiane Bressan classifica o secretário como uma espécie de “dissidente” – uma vez que se afasta das origens latinas e promove campanha contra imigração. “Ele vai apoiar, ao meu ver, de maneira bem assertiva, os esforços contrários à Venezuela e Nicolás Maduro”, garante.