Aos 77 anos, Miguel Reale Júnior não se cansa de lutar pela democracia. O autor do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff defende que os crimes de responsabilidade cometidos por Jair Bolsonaro já o qualificam a seguir o mesmo caminho. Afirma, no entanto, que o presidente conseguiu “um escudo contra o afastamento” quando nomeou Ciro Nogueira para a Casa Civil e “entregou o governo ao PP”. Mestre das palavras e argumentos, Reale Júnior tem como arma o conhecimento sobre um livro bastante vilipendiado nos últimos tempos: a Constituição. Jurista, professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo e criminalista respeitado, teve seus dias de político ao comandar, por um curto período, o Ministério da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Sua relação com os tucanos, porém, chegou ao fim definitivamente em 2017, quando se desfiliou do partido. Com lucidez e didatismo, traça um panorama jurídico e político do Brasil de hoje – um País em que a democracia está cada vez mais frágil.

Como o senhor viu a ameaça do presidente Jair Bolsonaro ao anunciar que pediria o impeachment dos ministros do STF, Alexandre de Moares e Luis Roberto Barroso?
O presidente precisa de um inimigo para mobilizar suas tropas, e ele já sinalizou que esse inimigo é o Judiciário. Ao acentuar o confronto, ele coloca o Executivo, Legislativo e Judiciário em um mesmo caldeirão. É muito grave. Bolsonaro cria uma crise artificial, porque o que importa para ele é a crise. Isso repercute na economia, pois já vivemos um processo inflacionário grave, que atinge os mais pobres. Falta comando na economia, o que pode levar a uma recessão ainda maior.

O general Augusto Heleno defendeu um golpe de estado, dizendo que o artigo 142 da Constituição garante as Forças Armadas como “poder moderador”.
Participei proximamente da concepção desse artigo na época da Constituinte. É preciso ler o que ele diz: que as Forças Armadas podem ser convocadas para solucionar impasses por qualquer um dos poderes constituídos, Executivo, Legislativo ou Judiciário. O conceito da lei está sendo distorcido.

O Senado revogou a Lei de Segurança Nacional, um “entulho autoritário”, e aprovou uma nova proposta baseada no projeto apresentado pelo senhor em 2002, quando era ministro da Justiça do presidente FHC. Demoramos muito para revogar a LSN?
O projeto ficou paralisado 20 anos no Congresso Nacional porque os crimes contra a segurança nacional eram raros. No governo FHC, a lei nunca foi aplicada. Durante as gestões de Lula e Dilma, foi usada apenas em casos de greves de policiais. A questão ressurgiu agora, quando o pretendido futuro ministro do STF, André Mendonça, passou a usar a LSN contra opositores do governo, inclusive intelectuais e jornalistas. A data de aprovação do novo projeto foi significativa: no dia em que vimos os tanques fazendo fumaça e gastando óleo diesel com seus motores desregulados.

A nova lei regulamenta crimes contra o Estado Democrático de Direito e as instituições democráticas, muitos deles cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro. Qual é o risco de ele desfigurar a lei por meio de vetos?
Há um capítulo que fala sobre crimes de caráter eleitoral, um deles relacionado as fake news. Esse pode ser um dos vetos do presidente. Pela votação significativa que tivemos no Senado, porém, eventuais vetos podem ser derrubados.

Como o senhor analisa o episódio do desfile de tanques ocorrido no dia da votação do voto impresso?
A cerimônia em si foi absolutamente inaudita, fantasiada, um pouco ridícula. Gastar dinheiro público para fazer desfile de tanques mal regulados para levar um convite? Foi absolutamente inusitado. A pergunta é: para que fazer isso? Foi uma demonstração de força, para dizer que as Forças Armadas estão em apoio ao presidente. O recado deu com os burros n’água, porque, ao contrário, a ação foi objeto de críticas e as Forças Armadas saíram desmoralizdas. Deu tudo errado, parecia uma festa programada pelos Trapalhões.

O presidente do STF, Luiz Fux, rompeu o diálogo com o presidente, o TSE encaminhou ao STF notícia-crime contra ele. O que é possível fazer no âmbito legal para conter os arroubos autoritários de Bolsonaro?
O STF e o TSE já fizeram o que poderiam fazer. Existe ainda a ação de apuração das responsabilidades na CPI da Covid. Há uma pressão do Ministério Público Federal para que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, deixe de ter uma posição partidária no exercício do cargo. Há ainda a manifestação da sociedade civil, por meio do manifesto assinado por empresários, intelectuais, economistas, jornalistas. Ao perder no voto impresso, o presidente diz que as eleições de 2022 não serão confiáveis. Ele não quer o voto impresso, quer o argumento de que não teremos o voto impresso com a finalidade de melar as eleições. Sabe que terá dificuldades de chegar ao segundo turno e não tem outro argumento para enfrentar a derrota a não ser negar a legitimidade do pleito.

O Procurador-Geral da República pode tomar decisões individuais que não são passíveis de recurso. No caso de Augusto Aras, a situação é ainda mais delicada porque ele não foi escolhido por lista tríplice. A sociedade civil é refém do PGR? Como sair dessa armadilha?
Conheço bem o assunto porque também fiquei refém de Geraldo Brindeiro quando era Ministro da Justiça. A questão do PGR é um problema da estrutura política. É um cargo importantíssimo e é necessário que exista uma regulamentação diversa para que o PGR não seja um imperador a impor seu tempero e o seu humor em decisões graves.

O senhor foi autor do impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Há elementos para afastar Bolsonaro?
São situações diferentes. Ele conseguiu um escudo contra o afastamento ao nomear Ciro Nogueira para a Casa Civil e entregar o governo ao PP. Com Arthur Lira na presidência da Câmara e Ciro nas manobras, o processo não será instalado. Bolsonaro acumula crimes de responsabilidade, da falta de decoro às acusações mentirosas. Há ainda a participação em atos contra a democracia e o comportamento na pandemia. Nesse caso, não foi incompetência: havia o plano da imunização de rebanho. É um mantra, assim como o tratamento precoce. Ele tentou impedir os governadores e prefeitos de impor medidas de precaução previstas na lei sancionada pelo próprio presidente. Conspirou contra o isolamento, promoveu aglomerações, desprezou as vacinas. Isso revela de forma espantosa o desprezo pela vida e pela saúde. Não podemos nos iludir: não foi negligência. Foi planejado.

Dilma deixou o poder após o impeachent. Se fosse afastado, Bolsonaro aceitaria sair de forma pacífica?
Com Bolsonaro estamos sempre sob ameaça de golpe. Não se pode dizer que ele é incoerente. Isso vem desde o tempo de tenente frustrado e das entrevistas que dava como deputado.

Bolsonaro é protegido pela imunidade do cargo. Quais sanções podem atingi-lo após deixar a presidência?
São várias. Contra a saúde pública, em decorrência da pandemia, artigos 267 e 268. Contra o perigo de vida, artigo 132 do Código Penal. Ainda estimulou a população a descumprir as normas de precaução e a praticar o crime previsto no artigo 268, ao incitar a invasão de hospitais. Além dos crimes contra as instituições democráticas. Ele sabe que, não sendo presidente, cairá na vala comum e na primeira instância do MP. Deixará de ficar na mão do procurador amigo.

O TRF-3 determinou o trancamento da última ação penal contra o ex-presidente Lula que tramitava em São Paulo. Como o senhor vê uma nova candidatura de Lula?
Os erros do juiz Sérgio Moro e dos procuradores da Lava Jato não transformam Lula em um inocente. O lamentável é que o PT nunca fez sua meaculpa. Chegaram a criar uma fantasia de que toda a corrupção foi criação dos EUA junto com os militares para enfraquecer a engenharia brasileira. Essa ficção cientifica depõe contra o PT, é ridícula. Tive acesso aos processos. Havia uma tríade formada por empresários, diretores de estatais e cúpulas partidárias. A começar pelo PP, que criou a corrupção sistêmica com o PT e PMDB. Os partidos indicavam diretores na Petrobras e, junto com empresários, promoviam sobrepreços e propinas, depois revertidas aos partidos. Fingir que não houve nada, passar uma esponja e dizer que houve criminalização da política? Será um grande retrocesso ético e moral se cairmos nesse lenga-lenga. Houve, sim, a prática de delitos por parte da classe política, de vários partidos, inclusive os que não estavam no poder.

A postura do STF de mudar seu entendimento em relação ao foro da Lava-Jato não criou instabilidade jurídica? Não dá a impressão de que tentaram corrigir a decisão?
Sim, houve erros graves. O STF diz que tomou a decisão sem usar as gravações publicadas no caso da Vaza-Jato, mas é evidente que, sem elas, as alegações de suspeição seriam muito frágeis. A ligação espúria do MP com a magistratura, combinando o jogo, é inadmissível.

O professor de Política da Universidade de Nova York (NYU), Adam Przeworski, define democracia como “um regime em que os governantes deixam o poder quando perdem as eleições”. É possível que o presidente Bolsonaro tente se manter no poder mesmo se perder?
Há esse risco. Não vejo as Forças Armadas embarcando nessa aventura, mas tenho medo de um movimento sedicioso com tropas bolsonaristas fanáticas, com milícias e polícias militares, especialmente dos corpos inferiores das PMs. É bom lembrar que todos os movimentos sediciosos ocorridos no Brasil tiveram participação das PMs. As Forças Armadas têm poucos membros profissionalizados, mas as PMs do RJ e SP são imensas. Meu receio é que Bolsonaro crie uma desconfiança com a democracia. Imagine um movimento à la Trump, com milícias e PMs invadindo o Congresso? Haveria risco de muitas mortes.

As instituições estão funcionando?
Sim, mas espero que as lideranças políticas abram mão de suas ambições pessoais para construir uma terceira via. Que os presidenciáveis escolham aquele que tenha uma capacidade maior de reunião, como foi com Tancredo Neves. É o momento de pensar em um governo de coalizão, de conciliação, de salvação. Aí sim, esses políticos vão mostrar que amam mais o País do que a si mesmos.