A medalha de prata da belga Marieke Vervoort na prova dos 400 metros para atletas com deficiência motora, conquistada no sábado, no Engenhão, foi o penúltimo ato dela como atleta. No próximo sábado, Marieke ainda tentará o bicampeonato paralímpico nos 100 metros e depois irá se aposentar do esporte. Ela quer aproveitar a vida. Com duas doenças degenerativas, Marieke possui autorização para praticar a eutanásia. “Vou aproveitar cada minuto da minha vida, dedicar mais tempo a minha família e amigos”, diz a atleta.

Marieke foi diagnosticada aos 14 anos com duas doenças degenerativas, tetraplegia progressiva e distrofia muscular miopática. Desde então, passou a perder capacidade de movimentos e de visão. As doenças não têm cura, causam muita dor e pioram a cada ano. Em 2008, ela conseguiu autorização para praticar eutanásia.

Agora, aos 37 anos, ela decidiu parar de competir. “É o momento de eu me aposentar, não porque eu não goste mais de competir, mas porque os treinos são muito intensos e é difícil para o meu corpo”, afirmou, durante entrevista coletiva concedida neste domingo. Ela avisou, contudo, que não pretende praticar a eutanásia logo após os Jogos Paralímpicos do Rio-2016, como chegou a ser divulgado.

“Em primeiro lugar eu acho que há certo mal entendido com relação ao que a imprensa belga divulgou, de que eu iria praticar a eutanásia depois dos Jogos do Rio. Isto está fora de questão”, disse a atleta. “Assinei uma autorização de eutanásia em 2008 porque é muito difícil conviver com essa doença. Com a documentação, eu fico com um sentimento de tranquilidade, mas quero fazer muita coisa ainda.”

Ela admitiu, contudo, que sua decisão afeta pessoas próximas. “Para minha família é muito difícil, mas eles entendem o quanto eu sofro e eles entendem minha decisão. Todos me apoiam muito.”

Marieke ressaltou também que não sabe quando o momento de por em prática a eutanásia irá chegar. “Eu vejo por mim. Imponho meus limites, e quando eles chegam eu acabo empurrando mais pra frente. Se alguém me dissesse há alguns anos que todos os dias uma enfermeira teria que vir me ajudar, eu não ia querer. Eu não quero depender dos outros”, contou. “Hoje, quatro vezes por dia uma enfermeira vem me ajudar. Agora eu tenho a autorização da eutanásia e tenho a vida nas minhas mãos.”

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A doença provoca muitas dores, e Marieke contou que nunca sabe como estará ao longo do dia. Às vezes, ela tem crises que chegam a durar quatro dias. Nesses momentos, apontou que o melhor remédio é a companhia de amigos e familiares.

“Meu melhor medicamento é um abraço forte. Às vezes choro muito quando sofro com as dores, e me traz muito calor quando alguém me abraça, me conforta, diz que está comigo e pergunta como pode me ajudar. Isso me aquece e me traz um calor muito importante”, ressaltou.

PLANOS – Um de seus planos após deixar as pistas é viajar o mundo para fazer palestras motivacionais e passar uma mensagem positiva sobre a eutanásia, prática proibida na maior parte do mundo, incluindo o Brasil. “Países como o Brasil devem conduzir um debate para que isso não seja mais um tabu. Uma vez com a autorização, não precisa ser em uma semana, ou dia seguinte”, explicou.

Marieke destacou ainda que conseguir autorização para a prática da eutanásia foi um processo difícil. “Não é algo que você vai numa loja e compra. É difícil ter a autorização. Consultam vários médicos, eles têm que atestar que você tem uma doença difícil e progressiva, que não consegue mais viver com essa doença, que não há mais nenhuma chance de melhora. Eu consultei três especialistas e um psiquiatra para atestar que tinha capacidade para tomar essa decisão”, contou, explicando ainda que, no dia em que decidir pôr em prática a eutanásia, será consultada novamente.

Até lá, contudo, ela quer aproveitar bastante a vida e montar um museu para contar a sua história. “Eu sou uma pessoa maluca. [Depois da autorização] Já fiz bungee jump em cadeira de rodas, algo que eu jamais faria antes. Na infância sentei num caça F-16 e pretendo voar em um. Eu gostaria também de participar de um rally”, enumerou.

“Mas a maior coisa da minha lista é um museu. Coleciono todos os artigos sobre mim, tenho clipping de tudo que apareceu na imprensa, tenho fotos. Sou madrinha de uma creche de crianças com queimaduras. Elas te inspiram. Tive dois acidentes, um num treinamento em 2013, quando machuquei meu ombro e fiquei quatro meses no hospital, e outro em 2014, quando estava fazendo massa e virei a água quente da panela em cima de mim. Fiquei quatro meses no hospital. Guardei todos os cartões que recebi, todas as cadeiras de rodas, equipamento de natação, cadeiras de competição, tudo desde a minha infância. Eu quero colocar tudo num museu.”

Budista, ela disse que convive bem com a ideia da morte. “Eu tenho uma relação diferente com a morte se comparado ao passado. Não tenho mais medo dela. Posso fazer coisas loucas. Pra mim a morte é algo que você vai dormir e nunca mais acordar. É como se você fosse sedada. É algo tranquilo. Eutanásia pra mim me traz paz. Não quero sofrer para morrer, quero falecer de forma tranquila, com as pessoas que eu amo no meu entorno”, comentou, dizendo ainda que já escreveu cartas “para todas as pessoas que eu amo”.

Quando morrer, Marieke espera que as pessoas lhe vejam como alguém que passou uma mensagem positiva. “Eu gostaria que as pessoas lembrassem de mim como aquela pessoa que está sempre sorrindo. Quando estou sofrendo estou sempre olhando o lado positivo da vida. Sempre tento não reclamar e apreciar as pequenas coisas”, ressaltou.

Sobre sua última participação em Jogos Paralímpicos, ela diz que o sentimento é duplo. “Por um lado estou muito feliz de estar aqui. Eu participei da cerimônia de abertura e ela foi fantástica. Por outro lado, enquanto eu estava feliz, eu estava chorando ao mesmo tempo. Eu estava pensando que essa seria minha última Paralimpíada”, disse Marieke.

“No dia 17, na minha última prova, eu vou dar o máximo. Meus braços vão quase sair do meu corpo de tanto esforço, e acho que quando terminar essa prova vai ser muito difícil pra mim. Não importa a posição que vou chegar, mas vou chorar muito porque será a última vez que estarei na cadeira de competição.”


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