Quando Julián Fuks aceitou o convite da marca de relógios Rolex para participar de um programa de mentoria com Mia Couto, seu romance A Resistência já tinha extensa acolhida crítica, e nos meses seguintes o livro amealhou prêmios literários – foram três Jabutis (o mais recente em 2019, como melhor livro brasileiro publicado no exterior) e também o prestigioso Prêmio Saramago, atribuído em Portugal para jovens autores (ele tem, hoje, 38 anos). O período foi dedicado à escrita de A Ocupação, romance que a Companhia das Letras publicou em dezembro.

O novo livro traz de volta o alter ego do autor, Sebastián, costurando uma linha entre a literatura política e reflexões extremamente pessoais. O cenário são duas ocupações (reais) em São Paulo, que o autor frequentou durante a feitura do romance. Além da latência desse “embate”, entre intelectual e o povo sem moradia, o livro também descreve lutas internas do narrador, como o relacionamento com o pai internado em um hospital com problemas de saúde, e da expectativa de conceber um filho com a mulher.

Mia Couto “aparece” como um personagem no livro (bem como diversos moradores das ocupações que o escritor visitou, compartilhando histórias pungentes sobre as condições sociais que enfrentam no dia a dia). O escritor moçambicano escreve uma carta admoestando o jovem colega a não se livrar das reflexões políticas, e que a “literatura deve afirmar sua própria soberania”. Respondendo a preocupações do autor sobre o atual estado político do Brasil, Couto escreve: “o mundo que nasce da tua escrita e dos teus livros é bem maior que as circunstâncias políticas que nos cercam”.

Fuks gentilmente separou um tempo entre as festas de fim de ano para responder, por e-mail, às seguintes questões.

É uma das lutas do personagem-narrador durante o romance, mas para você, autor, como foi lidar com a questão de estar presente no ambiente de uma ocupação sendo um ‘curioso, um intruso, um infiltrado’, para usar as palavras do livro?

Escrevendo um livro com essa proposta, confrontando meu narrador com pessoas em situação tão diferente da dele, era impossível que essa questão não estivesse presente, latente por toda parte. Não me parecia razoável buscar uma solução conciliadora; me interessava justamente trabalhar a tensão, aceitar a irresolução da distância, da diferença. A figura do intelectual que tenta se fundir ao povo está presente em nossa cultura há muitas décadas, e já envelheceu. Aqui a saída não é pela fusão, mas pela busca da afinidade, pela aproximação, pela empatia. Ao fim, idealmente, pela convergência.

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O que as experiências de conviver com os moradores da ocupação e, também, de ter participado de uma ‘festa’ (quando os sem-teto executam ocupações em prédios abandonados) mudaram na sua percepção de mundo?

Estes têm sido tempos de terrível desalento, nem preciso dizer. A caravana de barbaridades políticas por vezes nos imobiliza, nos paralisa num estado de desânimo e torpor. Estar ali, no meio daquelas pessoas que não podiam senão lutar, que não tinham direito sequer ao desânimo, acabou sendo a um só tempo uma tomada de consciência e uma injeção de ânimo. A mudança desejável ao mundo é eternamente urgente. A luta não pode esperar por tempos melhores, deve ser travada dia a dia, em cada detalhe, em cada esquina.

É possível arriscar um lugar para a literatura inserida nesse contexto? Esse livro (ou algum outro) pode ultrapassar as barreiras sociais brutalmente impostas a essas pessoas?

Nunca acreditei que a literatura pudesse ser a redentora da realidade. Quando vejo o papel que se quer atribuir a ela neste momento, quanto se deseja uma arte que salve, estremeço com a suspeita de que ela não será capaz de cumprir esse ideal – cumprir ideais não tem sido o forte da arte, afinal. Mas a literatura é, sim, mais um discurso sobre o mundo, participa do mundo, discute, intervém. E é um discurso dos mais privilegiados, por se permitir a escolha minuciosa das palavras, a construção cuidadosa das ideias. Assim, a contribuição que pode dar tem seu valor, e também ela própria cresce nesse contato com o presente, assumindo maior pertinência.

Você vem falando que não queria fazer uma literatura militante, mas sim política. Mesmo assim, a história extremamente pessoal do narrador (e do autor?) também ocupa o cerne do romance. Como você pensou em equilibrar esses fatores (militância e política, política e intimidade)?

Penso que é tempo de uma literatura política. A política tem tomado diversas instâncias das nossas vidas, e assim seria arbitrário e insincero exigir que ela ficasse de fora da literatura. Mas uma literatura política não precisa ser dogmática ou panfletária. Pode conceber a política de maneira mais ampla, e aí justamente convém pensar as múltiplas maneiras em que o pessoal tem se feito político, e o político tem se feito pessoal. A política tem invadido os domínios da intimidade, e há algo a explorar nesse choque de espaços à primeira vista díspares.

O pai do personagem narrador é psicanalista, e você escreve muito sobre família, identidade, laços, temas caros à psicanálise. Ela tem alguma importância definitiva na sua vida (literária)?

Bom, os pais do narrador são psicanalistas como os meus pais – o ímpeto autoficcional passa por aí, sim. A psicanálise marca a minha vida nessa dimensão bem pessoal, nas discussões familiares, numa certa visão transmitida em conversas ao longo dos anos. Acho que algo disso se reflete nos meus livros, e talvez esteja no cerne do que me leva a escrever. A compreensão de que a palavra, se não muda necessariamente o mundo externo, transforma da maneira mais intensa e profunda aquele que a profere.

Você participou de um programa de mentoria com o Mia Couto no processo de elaboração deste livro. O que você pode compartilhar dessa experiência? Você já tinha passado por algo parecido na sua trajetória literária?

Mia Couto sempre me pareceu um autor interessantíssimo por seu olhar atento ao outro, pela capacidade de capturar as vozes dos outros, e assim compor a história do seu próprio país. Quando soube da possibilidade de trabalhar com ele, de imediato pensei que eu mesmo podia almejar algo assim, que esse era um objetivo necessário e bonito para a literatura. O diálogo foi extenso e intenso, e algo dele pude transmitir no livro. Sinto que ele se tornou mais um desses outros que eu devia ouvir, e que na diferença acabamos por convergir.


Em um trecho de uma conversa do narrador com o personagem Najati, ele fala que ‘somos todos parte de uma família’, e depois leva em conta que ‘toda violência contra o outro é uma violência contra nós mesmos’. Depois da experiência desse livro, qual é a visão que você tem sobre 1) a força policial aplicada nas ocupações e nas restituições de posse e 2) a imensa resistência que o ativismo de moradia enfrenta no Brasil?

Quando não conhecemos o outro, quando não o compreendemos, é que nos tornamos capazes da violência mais extrema. Assim têm sido tratados os movimentos sociais, com crescente incompreensão e truculência. Hoje a perseguição não é só policial, mas jurídica. Carmen Silva e Preta Ferreira, duas das principais lideranças da Frente de Luta por Moradia, estão sofrendo processos absurdos na Justiça, tendo suas liberdades cerceadas com pleno arbítrio. Entender a simplicidade e a justiça de suas demandas, entender a precisão e a urgência de suas ações, é o mínimo para mudar essa realidade inaceitável, em todos os sentidos.

A OCUPAÇÃO

Autor: Julián Fuks

Editora: Companhia das Letras (134 págs., R$ 44,90, R$ 29,90 o digital)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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