Quando se encontrou com a reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, há duas semanas, num dos hotéis mais seletos da capital argentina, Jonathan Pryce podia até esperar, mas ainda não havia sido indicado para o Globo de Ouro, na categoria de melhor ator de drama, por sua interpretação como o papa Francisco em Dois Papas, de Fernando Meirelles. A produção da Netflix recebeu várias indicações, incluindo melhor coadjuvante, para Anthony Hopkins, e melhor filme. Meirelles não foi indicado como diretor, mas o filme é o melhor que já fez, superando o celebrado Cidade de Deus. Ao ouvir a avaliação do repórter, Meirelles comemorou. “Você está me alforriando. Tudo o que faço é sempre ofuscado por Cidade de Deus.”

Aleluia! Dois Papas já estreou no cinema, em salas selecionadas. Na sexta, 20, chega à Netflix. Meirelles avalia: “É a situação ideal. Pudemos levar o filme a festivais, estreamos no cinema e agora, no streaming, teremos a possibilidade de atingir um público muito maior. E tudo isso com recursos e liberdade de criação”.

Pryce diz que não é religioso, mas embarcou no projeto por conta da grandeza do personagem. “Francisco pode ser discutido na Argentina, mas rapidamente se tornou uma das lideranças mais importantes do mundo. Admiro sua agenda humana e política – a defesa dos excluídos, a crítica à concentração da riqueza e da degradação do meio ambiente pelas grandes economias.”

Como foi se preparar para o papel? “Por se tratar de uma figura real e conhecida, tomei certas precauções, analisando e emulando certos gestos. Mas é curioso – numa cena, quando me despeço de Bento (Hopkins) e o plano é aberto, Fernando ficou entusiasmado e me cumprimentou, dizendo que eu estava caminhando exatamente como ele. Tenho de admitir, talvez para decepção de Fernando, que se trata de mera coincidência. Caminhamos igual, essa é a verdade”, afirma Jonathan Pryce.

Meirelles havia comentado com o repórter que Hopkins, ao aceitar o papel de Bento XVI, lhe havia pedido que não fizesse nenhuma mudança no roteiro de Anthony McCarten, embora ainda faltassem de quatro a cinco meses para iniciar a filmagem. Hopkins prometeu dissecar o roteiro e chegar ao set com cada vírgula e entonação preparadas. Pryce sorri. “Cada ator tem seu método. Tony (Hopkins) é obsessivo, no melhor sentido do termo. Em termos musicais, diria que é um virtuose que toca com a orquestra, seguindo a partitura e servindo-a com seu perfeccionismo. Eu sou mais jazzista. Gosto de improvisar, de interagir. Cada plano termina saindo ligeiramente diferente, porque a energia muda muito no set.”

Lá atrás, em 1995, em Cannes, Pryce encontrara-se com o repórter por outro de seus melhores filmes, hoje um tanto esquecido, Carrington, de Christopher Hampton. A cinebiografia da pintora Dora Carrington, interpretada por Emma Thompson. Uma mulher adiante do seu tempo, que se vestia como homem e manteve, a vida toda, uma relação afetiva muito forte com o escritor Lytton Strachey, um homossexual assumido (é o personagem de Pryce). “Foi um filme muito importante para mim. Já havia feito, há uma década, Brazil (de Terry Gilliam) que, como você sabe, virou cult, mas algo se passou em Carrington. Chris (Hampton) é muito talentoso, mas infelizmente as pessoas só pensam nele como roteirista de Ligações Perigosas (de Stephen Frears).”

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Todos – Meirelles, McCarten e os dois atores que se revezam como Francisco (Pryce) e Jorge Bergoglio, quando ele era apenas padre (Juan Gervasio Minujín) – destacam a mesma coisa. Como padre, na Argentina, mesmo tendo abraçado causas populares, Bergoglio foi sempre controverso por suas atitudes durante a ditadura militar. “Não há tema mais delicado para nós. As violações de direitos humanos, os crimes da ditadura não têm perdão”, reflete Minujín.

“Deram origem a um trauma na consciência argentina.” Nesse sentido, Bergoglio carregou a culpa por haver transigido com os militares. “É um personagem trágico. Dizemos dele que era o padre, o cardeal que nunca ria. Por isso foi uma surpresa tão grande quando ele surgiu sorrindo, naquela sacada, investido como papa Francisco. Era outro homem. Faz todo sentido sermos dois atores no papel, um pouco pela extensão de tempo que o filme cobre, mas também por essa mudança visceral de Bergoglio para Francisco.”

O filme é sobre o encontro de dois homens num momento crítico da Igreja. Bento assume o papado, mas sente que a Igreja precisa mudar, e Bergoglio é o homem certo para isso. Mas para que o primeiro renuncie, abrindo caminho para a investidura do segundo, é preciso muito diálogo. Entendimento. Ambos precisarão expiar suas culpas – a de Bento, ter se omitido, diante de denúncias de pedofilia, para preservar a instituição.

Nos anos 1960, Otto Preminger fez um grande filme político sobre a Igreja Católica como instituição, O Cardeal, com Tom Tryon. Mais de meio século depois, Meirelles dá sua contribuição, e crava outro marco.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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