[Coluna] Obrigada, Preta Gil, pelas lições

[Coluna] Obrigada, Preta Gil, pelas lições

"PretaCom sua coragem e liberdade, cantora virou inspiração para todas as mulheres que anseiam por liberdade em uma sociedade conservadora e machista."Quando eu vi, tinha três bandeiras fincadas em mim: a das gordinhas, dos LGBTs e a dos excluídos em geral". Essa frase foi dita por Preta Gil em uma entrevista que fiz com ela em 2013 para a revista Tpm. Naquela tarde, demos boas risadas e, em poucos minutos, Preta parecia ser mais uma amiga do que uma entrevistada. Deixar as pessoas à vontade era um dos seus milhares de dons. Já conversei com outros amigos jornalistas que, ao terem contato com a cantora, tiveram a mesma sensação.

Antes daquela tarde, já havia entrevistado Preta por telefone algumas vezes (e em todas ela foi genial). O assunto era principalmente um tema que ela abraçou quase sem querer: a gordofobia, uma pauta que ela encampou antes mesmo dessa palavra existir. Ela apenas foi sendo ela mesma: livre, contestadora.

A cantora não planejou virar ativista. "Quando tudo começou, eu pensava: mas por que as pessoas precisam de uma voz, de uma musa? Na minha casa, as pessoas se amavam de diversas maneiras, e não existia preconceito. Eu não sabia que isso existia", ela me contou. Essa casa onde as pessoas eram livres abrigava, além dos pai Gilberto Gil, sua mãe, Sandra Gadelha, e, posteriormente, sua madrasta, Flora Gil, seus sete irmãos e amigos dos pais, como Caetano Veloso, Nara Leão, Maria Bethânia e sua madrinha, Gal Costa.

Preta, mulher preta e bissexual, pode não ter planejado virar ativista, mas, com sua coragem e liberdade, virou inspiração para todas as mulheres que anseiam ser livres em uma sociedade extremamente machista. Sofremos a perda de uma aliada feroz e generosa, que não deixou de ensinar nem na hora da doença, que encarou de frente, majestosa e nos dando lições até o fim.

A mesma Preta que não planejou levantar a bandeira dos excluídos virou voz também dos pacientes oncológicos. No início dos anos 2000, ela causava escândalo posando nua para seu disco de estreia, Preta à Porter, exibindo um corpo fora dos "padrões" e com as celulites e estrias que todas temos. A partir de 2023, depois de descobrir um câncer de intestino e passar por cirurgias complexas, ela posou várias vezes de biquíni, com cicatrizes à mostra e exibindo uma bolsa de colostomia.

Tanta força e liberdade incomodam. E muito. Preta virou alvo de haters raivosos muito tempo antes do chamado "gabinete do ódio" existir. Naquela mesma tarde no Rio de Janeiro, ela me contou que havia processado o programa de TV "Pânico" e sido vítima do humorista Danilo Gentili, entre outros. Motivo: ofensas gordofóbicas travestidas de piadas.

A cantora já pensou também em processar o então deputado federal Jair Bolsonaro. Em 2011, Preta participou remotamente do programa "CQC", enviando uma pergunta para Bolsonaro. Como sempre, foi certeira: "O que o senhor faria se tivesse um filho gay?" Bolsonaro respondeu: "Preta, não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco, e meus filhos foram muito bem educados e não viveram em um ambiente como, lamentavelmente, é o teu." Sim, é revoltante ler isso, principalmente após a morte dessa aliada tão especial.

Naquela tarde de 2013, a gente não podia nem sequer imaginar que Bolsonaro se tornaria presidente do Brasil. Quando perguntei sobre o caso, ela me disse que quem a acalmou foi o pai: "Contei para ele e ele me disse: 'Ih, esse aí eu conheço. É do mesmo povo que me prendeu em 68. Igual a ele, Preta, tem vários. É só um que foi para a TV aparecer. Você vai se importar?' Quando vi que meu pai não estava preocupado, dei uma amenizada no meu ódio", ela contou.

Os ataques a ela não pararam mais. Nem na hora da doença. Nem no dia da sua morte. Desde que Preta anunciou a descoberta de um câncer, seguidores do ex-presidente comemoraram, desejaram sua morte e celebraram seu sofrimento. O horror.

Mas melhor fazer como Preta: seguir o conselho de Gilberto Gil e "não se importar". Vale mais focar na alegria, na união com os amigos, na coragem e em todas as lições que Preta nos deu nos seus 50 anos de vida. Como diria o seu "tio Caetano", na voz de sua "madrinha Gal": "O leite mau na cara dos caretas." Obrigada por tudo, Preta Gil.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.