[Coluna] O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

[Coluna] O pardo e o mal-estar do racismo brasileiro

""SerMovimento de pardos que defendem identidade racial distinta da negritude se fortalece. Deslegitimar esse vínculo é um desserviço na luta contra o racismo, endossando o mito da democracia racial.Toda e qualquer tentativa de simplificar o racismo é um tiro no pé. Ou melhor: é uma carga redobrada de combustível para fazer a máquina do racismo funcionar. E talvez não tenhamos assunto mais inflamável do que a questão do pardo no Brasil.

Nos últimos anos, o cenário público tem assistido ao fortalecimento de um movimento de pessoas pardas que defendem uma identidade racial distinta da negritude. Embora não seja um fenômeno inédito, essa posição tem gerado tensões, pois reivindica especificidades que, em alguns casos, flertam com práticas de inspiração eugênica. Tal processo provoca um grande mal-estar no debate racial e fragiliza a luta coletiva contra o racismo, como apontam o dossiê organizado por Flávia Rios e o artigo de Lia Vainer e Érico Oliveira publicado na Folha de S. Paulo.

Um mal-estar que em tempos de lacração, frases feitas e a gana desenfreadas por likes se transforma numa sucessão de oportunismo e desrespeito com pessoas negras histórica e organicamente engajadas na luta antirracista e, o que me parece mais perigoso, indica uma profunda incompreensão da luta histórica da população negra deste país, que de forma estratégica transformou o negro numa categoria política, que abarca pretos e pardos.

Isso mesmo. Ser negro é uma opção política densamente costurada por diferentes movimentos negros, que perceberam que, para além das nuances fenotípicas, pretos e pardos compartilham as sanções, discriminações e violências de uma sociedade fundamentada no e pelo racismo.

Isso não significa negar a existência da identidade parda. Ao contrário: significa compreendê-la à luz da nossa história. Afinal, dentre os brasileiros afrodescendentes, ser pardo é, também, ser negro. Deslegitimar esse vínculo é prestar um desserviço à luta contra o racismo, endossando o mito da democracia racial que, por muito tempo, apostou na fragmentação dentre a população negra como uma ferramenta importante para manter alimentada a sanha do racismo.

Não se trata, portanto, de negar a mestiçagem que compõe o Brasil. De fato, 45% da população se declara parda, e juntos pretos e pardos compõem 56% dos brasileiros. Mas a construção mítica de um mundo de (leo)pardos parece ignorar não só quem somos, mas também como chegamos até aqui.

Me explico

O Brasil se construiu a partir da miscigenação, mas essa mistura nunca foi romântica. A miscigenação que nos constituí tem uma matriz de desigualdades e brutalidades já denunciada pelos estudos históricos e também comprovada pelas pesquisas genéticas. A nossa miscigenação começa, e ao mesmo tempo funda, uma sociedade colonial e escravista, organizada pela sobreposição de violências de raça, gênero e condição socioeconômica. Os primeiros mestiços nasceram, em grande parte, de relações forçadas entre homens brancos e mulheres negras ou indígenas escravizadas.

Convido quem considera essa perspectiva exagerada para fazer um breve sobrevoo sobre os jornais publicados durante a vigência da escravidão. Em 1824, o Diário do Rio de Janeiro anunciava: "Quem quiser comprar um homem pardo, oficial de alfaiate, entre 17 e 18 anos, fale com José Vieira". Um ano depois, em Pernambuco, outro jornal divulgava o anúncio de um proprietário em busca de seu escravo pardo que havia fugido.

Esses exemplos revelam que, historicamente, o pardo foi incorporado à própria engrenagem racista da sociedade, organizada sob a lógica de que apenas os sujeitos racializados – os não brancos – podiam ser escravizados.

Quer dizer que todo pardo foi escravizado? Não. Assim como nem todo preto passou pelo cativeiro. Mas ambos – pretos e pardos – estiveram submetidos, ainda que de maneiras diferentes, às regras de uma sociedade que partia do princípio de que todo negro era escravizado até provar o contrário. Essa lógica atravessou gerações, impondo o estigma do "defeito de cor", capaz de determinar tanto a condição jurídica quanto a própria humanidade dos sujeitos racialmente definidos.

Dividir para dominar

A história, no entanto, não para aí. Em um mundo marcado por tensões raciais – e atento ao potencial explosivo de revoltas como a do Haiti –, dividir para dominar tornou-se estratégia recorrente. Foram construídos mecanismos para separar pardos e pretos, consolidando o perverso gradiente do embranquecimento.

No pós-abolição, essa lógica ganhou nova roupagem: o mito da democracia racial passou a se apoiar na figura do mulato, exaltado não como símbolo de diversidade, mas como instrumento de hierarquia, que escalonava os brasileiros conforme sua distância do ideal branco.

Então, quando uma mulher diz: "parda não, eu sou negra!", ela sabe exatamente quem é e de onde vem. Há uma escolha política deliberada em se reconhecer dentro do grupo que, historicamente, se juntou na luta por liberdade, dignidade e cidadania plena.

Reconhecer-se como negra não significa ignorar que o racismo continua a colocar a branquitude como régua do mundo. Pelo contrário: é admitir que as hierarquias persistem. Mulheres negras de pele retinta sofrem ainda mais com as mazelas do racismo no Brasil – e o mesmo se aplica aos homens.

Reconhecer-se negra/o é, pois, uma inversão do uso que o racismo faz da condição miscigenada do Brasil. Uma tecnologia forjada ao longo de nossa história, que permitiu que chegássemos até aqui, vivos, e compondo a maior parte da população brasileira – ainda que tenhamos muito contra o que lutar.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.