EXAME Mais de 3,4 milhões de estudantes esperam fazer a prova do ensino médio neste mês (Crédito:MÁRCIO FERNANDES DE OLIVEIRA)

Uma crise detonada no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), que organiza o exame do ensino médio, o Enem, e é a autarquia mais importante no sistema educacional brasileiro, virou motivo de preocupações para os 3,4 milhões de estudantes que nos dias 21 e 28 deste mês farão a prova de acesso às universidades. Crises têm sido recorrentes no Inep, que desde o início do governo Bolsonaro teve quatro presidentes. Mas dessa vez a situação atingiu um ponto insustentável. O bolsonarismo tenta, a todo custo, aparelhar ideologicamente o órgão e censura questões da prova. Os funcionários acusam o atual presidente, Danilo Dupas Ribeiro, de assédio moral. Nos últimos dias, 37 servidores — 27 deles coordenadores do Enem — pediram exoneração. Os servidores se queixam da “fragilidade técnica e administrativa” da atual gestão. Dupas foi nomeado em fevereiro pelo ministro Milton Ribeiro. A avaliação dos especialistas é que a crise não deve ameaçar a realização do Enem de 2021 — os exames já foram preparados —, mas prejudicará seriamente a educação brasileira. Fontes do mercado dizem que o governo federal pretende terceirizar com empresas particulares a elaboração do exame. Mesmo com a gravidade da crise, o ministro viajou para Paris. Em depoimento na Câmara dos Deputados, Dupas afirmou que as provas do Enem e do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) serão feitas nas datas marcadas. Em sua defesa, ele disse repudiar “qualquer forma de assédio”.

A crise gerou uma reação no meio acadêmico, na Câmara e no Senado. Para a senadora Leila Barros (Cidadania-DF), existe uma “clara tentativa de desmonte” do Inep pelo governo federal. Para resolver as sucessivas crises não só no Inep, mas em outras autarquias federais como o IBGE e o Ipea, ela apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que garante a autonomia das entidades, além de estabelecer que seus presidentes terão um mandato de quatro anos, após serem sabatinados no Senado. “As autarquias desenvolvem políticas de Estado, não de governo”, ressalta a senadora. Ela entrou com um requerimento no Tribunal de Contas da União (TCU) pedindo uma auditoria no Inep. Na Câmara, a crise também foi considerada ultrajante. “O Ministério da Educação já foi alertado, mas parece se preocupar apenas com as questões ideológicas”, comenta a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP). Segundo ela, o governo Bolsonaro tenta realizar intervenções ideológicas de extrema direita no Inep, através de funcionários nomeados no Ministério, que não são técnicos concursados. “Na prova do Enem, eles tentam mudar o termo ‘ditadura militar’ para ‘regime militar’. Eles não são servidores de carreira, técnicos com conhecimento para fazer alterações curriculares”, diz a deputada. Tabata afirma que várias irregularidades ocorrem no Inep e também na prova do Enem, muitas das quais foram detectadas em 2020, quando centenas de estudantes não puderam fazer o exame. Houve um acordo para que esses alunos não pagassem a taxa em 2021. O ministro Ribeiro recorreu, mas perdeu no STF. “É obrigação do governo federal garantir que o Enem não seja excludente”, diz. A Comissão da Educação na Câmara detectou irregularidades graves em cinco contratos, no valor de R$ 7,3 milhões, feitos quando Abraham Weintraub era ministro.

“Existe uma clara tentativa de desmonte do Inep na atual gestão. As autarquias desenvolvem política de Estado, não de governo” Leila Barros, senadora (Cidadania – DF) (Crédito:Waldemir Barreto)

A terceirização é avaliada pelo governo federal. No final de agosto, a Diretoria de Avaliações da Educação Básica (Daeb) encomendou um estudo para analisar a viabilidade de contratar uma ou mais empresas privadas para elaborar e revisar as perguntas dos exames, além de “equilibrar o nível de dificuldades das provas”. No sistema atual, os técnicos do Inep e colaboradores da autarquia é que elaboram as questões, usando os dados do Banco Nacional de Itens (BNI). O banco de dados, sob poder do Inep, serve para elaborar as provas do Enem e de todas as provas que avaliam como está a educação brasileira. A cada ano, menos estudantes realizam a prova do ensino médio, criada no 2º mandato de FHC (1998-2002). Em 2021, serão apenas 3,4 milhões de confirmados, o menor número desde 2005. Dentro do Inep, o clima é o pior possível. Os funcionários alegam sofrer perseguição de Dupas. Muitos adoeceram e estão afastados do trabalho por motivos de saúde. No dia 4, os funcionários fizeram um protesto em frente à sede da entidade em Brasília (DF) e no dia 10 entregaram uma lista de irregularidades aos deputados federais, enquanto o presidente da autarquia enfrentava uma sabatina. “Nós pedimos à sociedade brasileira que nos apoie. Agimos desta maneira para proteger o presente e o futuro da educação no Brasil”, diz Alexandre Retamal, presidente da Associação dos Servidores do Inep (Assinep). Retamal diz que os funcionários sofrem assédio dos bolsonaristas. Fundado em 1937 no Rio de Janeiro, então capital federal, o Inep é uma das poucas instituições educacionais brasileiras respeitadas no mundo inteiro. A autarquia ganhou importância quando foi coordenada pelo educador Anísio Teixeira (1900-1971), perseguido pela ditadura de 1964. Naquela época, o Inep já funcionava em Brasília. Teixeira morreu sob circunstâncias misteriosas no Rio de Janeiro.

IMPASSE O presidente da Assinep, Alexandre Retamal, pede apoio da sociedade (Crédito:Divulgação)

Profissionais da educação se dizem impressionados com as intervenções do governo federal no Inep. “Muitas coisas erradas acontecem no Inep. As intromissões e nomeações políticas para os cargos no Conselho Consultivo ocorrem de forma crescente”, diz Claudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da FGV. Ela lembra que foram nomeados para o Conselho o Tenente Coimbra (PSL-SP) e o pastor evangélico Roque Albuquerque. O Conselho é um organismo altamente técnico, que entre outras funções aprova as contas e o planejamento do Inep. O Tenente Coimbra é deputado estadual em São Paulo, com base na Baixada Santista. Foi tenente do Exército e entrou na política em 2018. Já o pastor Roque Albuquerque é o líder espiritual da Igreja Batista do Calvário em Fortaleza (CE). Em 2020, uma comissão de censura criada por Bolsonaro retirou da prova um total de 66 questões que pudessem “ofender” o suposto “conservadorismo” da população brasileira. Elas foram simplesmente excluídas. As questões condenadas estavam principalmente nas áreas de Ciências Humanas (29) e Linguagens (28). Até hoje, não se sabe quais foram as perguntas censuradas. Provavelmente, o Enem de 2021 será realizado na próxima semana. Mas a dúvida é sobre qual será o futuro da educação brasileira, após o desmanche levado a cabo na gestão Bolsonaro.