Peças de barro de 4 mil anos a.C. encontradas na Mesopotâmia são um dos documentos escritos mais antigos já achados pela humanidade. E, adivinhe: eles falam sobre os impostos. Os sumérios, um dos povos que viviam por ali, além de entregar parte dos alimentos que produziam ao governo, eram obrigados a trabalhar cerca de cinco meses por ano para o rei. No Egito antigo, os escribas, responsáveis por determinar a dívida de cada um, coletavam impostos em dinheiro ou em serviços pelo menos uma vez ao ano. Quem aperfeiçoou a técnica de cobrar taxas foram os romanos no período do império. O cálculo era feito com base no número de pessoas e qualidade de informações disponíveis sobre os contribuintes. Os publicani, ou fiscais, adiantavam dinheiro ao governo pelo direito de recolher impostos e, depois, tentavam recuperar o investimento acrescido de juros. Há milênios, os cobradores são “persona non grata” na sociedade, relacionadas muitas vezes à corrupção e roubo. Na última semana, entretanto, o papa Francisco não só os agradou, como os abençoou.

HUMILDADE Mesmo sendo jesuíta, a atitude do papa de olhar os “odiados” é inspirada em seu santo predileto: São Francisco de Assis (Crédito:Divulgação)

A uma delegação da Agenzia delle Entrate, o Fisco Italiano, o pontífice reconheceu que o trabalho deles “parece ser ingrato”, já que os impostos são frequentemente vistos como “meter as mãos nos bolsos de outras pessoas”, mas que todos são cruciais para o “funcionamento de uma sociedade justa”. Francisco disse que todos devem pagar sua parte de tributos, e deixou claro que os ricos deveriam pagar uma porcentagem maior, para que os membros mais fracos da sociedade não sejam “esmagados pelos mais poderosos”. O papa ainda abençoou as pessoas honestas que pagam seus impostos todos os anos e condenou a sonegação fiscal e a economia clandestina ou não declarada. Estima-se que, na Itália, mais de 100 milhões de euros (cerca de R$ 600 milhões) sejam perdidos por ano com a evasão fiscal e que a economia paralela — ou seja, atividades sem contrato, sem contribuições para a Previdência Social e sem dedução de impostos — custe 200 bilhões de euros (pouco mais de R$ 1 trilhão) aos cofres públicos.

Se estamos inseridos na sociedade, porque a Igreja não deveria pagar os impostos?” Dayvid da Silva, coordenador do curso de teologia da PUC SP

“Vejo nas atitudes do papa Francisco o mesmo que Jesus Cristo fazia. Estava sempre no meio do seu povo abençoando e priorizando os mais odiados e os mais pobres. Como um papa não vai abençoar um coletor de impostos se o próprio Cristo recebeu e acolheu um entre seus discípulos?”, argumenta Gerson de Moraes, teólogo da universidade Presbiteriana Mackenzie, citando São Mateus, que era um publicano, ou seja, cobrador de taxa, e decidiu largar tudo para seguir Jesus. Além de São Mateus, outra passagem importante na Bíblia menciona Jesus pedindo para Zaqueu, chefe dos cobradores, descer de uma árvore, pois iria almoçar na casa dele. “Era um escândalo. Exatamente porque esses povos eram vistos como pecadores, exploradores, corruptos, injustos e traidores dos judeus”, afirma o coordenador do curso de teologia da PUC SP, padre Dayvid da Silva.

Ao escolher o nome de Francisco, santo padroeiro dos pobres, Jorge Mario Bergoglio definiu o programa do seu papado. Apesar de não ser da ordem franciscana, ele decidiu priorizar os marginalizados, os fragilizados, os mais pobres e os mais odiados. O pontífice já havia se manifestado a favor do pagamento de taxas outras vezes. Em outubro de 2020, por exemplo, ele disse que “pagar impostos é um dever dos cidadãos”. Vale lembrar que o Vaticano não é obrigado a pagar tributo. Mais do que isso, recebe 0,8% dos contribuintes como doação para financiar a Igreja Católica — somente em 2019, a instituição recebeu cerca de US$ 1,2 bilhão (R$ 6,3 bilhões) do Estado italiano. No Brasil, as igrejas e centros religiosos estão entre as instituições isentas de coletas sobre dízimos, rendas e contribuições feitas por fiéis. “Se estamos inseridos na sociedade, porque a Igreja não deveria pagar os impostos? Tem paróquia que ajuda a sociedade, mas outras usam esse dinheiro para enriquecimento ilícito. É algo que merece ser discutido”, afirma o padre Dayvid da Silva.

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Com espírito Franciscano
Jesuíta, Jorge Mario Bergoglio foca suas atenções preferencialmente nos mais pobres e marginalizados

Fundada em 1209 por Francisco de Assis, os Franciscanos são um grupo de ordens religiosas mendicantes, inseridos dentro da Igreja Católica. Os homens que servem e se dedicam à ordem devem se abster de qualquer luxúria e posse. Vestidos somente com hábitos religiosos, como monges, precisam servir a uma vida de pobreza apostólica. A missão principal dos franciscanos é acolher e ajudar os mais pobres e marginalizados. O objetivo agrada ao Papa Francisco, que escolheu seu nome para homenagear o santo que o inspira. Apesar do pontífice ser jesuíta, ou seja, da Ordem Companhia de Jesus, suas últimas decisões como a inclusão de mulheres em cargos altos no Vaticano, a benção aos cobradores de impostos e a ligação direta com o povo, vão ao encontro do pensamento franciscano: o que importa de fato é a prática e não somente a doutrina correta. “O sacerdócio de Francisco sempre foi voltado aos explorados, humildes e necessitados”, afirma Gerson de Moraes, teólogo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.