A ciência parece estar ganhando uma batalha importante na sua guerra permanente contra o obscurantismo no Brasil. A descoberta de um imunizante eficaz deve se impor sobre a oferta de remédios sem comprovação para a Covid-19, como a hidroxicloroquina, a droga preferida do presidente Jair Bolsonaro. Um sinal alvissareiro de que isso pode acontecer foi dado, domingo 20, com o anúncio do governo de São Paulo da chegada, em outubro, das primeiras cinco milhões de doses da Coronavac, vacina em testes no Brasil produzida pelo laboratório chinês Sinovac, em conjunto com o Instituto Butantan. A notícia mostrou que uma vacina segura está mais próxima de chegar à população do que parecia. A meta do governo é concluir em breve a fase 3 dos ensaios clínicos e produzir 46 milhões de doses da Coronavac nos próximos meses para iniciar a vacinação em massa da população em dezembro.

“A chegada da Coronavac é uma demonstração da eficácia da ciência”, afirma o médico Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, que encabeça os esforços de fabricação local da vacina. “Nunca se produziu uma vacina em tão curto espaço de tempo, devidamente baseada em pesquisas e ensaios clínicos”.

Teste de segurança

A chegada da vacina é um alento e reforça as esperanças de imunização da população, que sofre com o medo da contaminação pelo coronavírus. Nos testes com humanos, a Coronavac se mostrou perfeitamente segura para pessoas de 18 a 60 anos. Está sendo avaliada agora sua eficácia em homens e mulheres fora dessa faixa etária. Em setembro, 552 crianças com idades entre 3 e 17 anos e 422 idosos com mais de 60 anos começaram a receber doses da vacina na China. Apesar dos bons resultados iniciais, a real eficácia da Coronavac só será comprovada após a conclusão da fase 3, que está sendo feita no Brasil. Em entrevista coletiva concedida na quarta-feira 23, o governador paulista, João Doria (PSDB), afirmou que 94,7% dos mais de 50.027 voluntários que participam de teste na China não apresentaram qualquer efeito adverso à Coronavac. Segundo o governador, apenas 5,36% dos participantes tiveram efeitos colaterais de grau baixo, como dores leves no local da vacina (3,08%), fadiga (1,53%) e febre moderada (0,21%). “Os resultados dos estudos clínicos realizados na China mostraram baixo índice de efeitos adversos e de baixa gravidade, que são comuns em vacinas amplamente utilizadas. A vacina da gripe, por exemplo, produzida pelo Butantan, apresenta efeitos pouco nocivos, como dor no local da aplicação e não mais do que 10% dos que são vacinados apresentam reação dessa natureza”, disse Doria.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera a Coronavac uma das oito vacinas mais promissoras em desenvolvimento no estágio final em todo o mundo. A mesma OMS declara que a hidroxicloroquina é totalmente ineficaz no tratamento do coronavírus. A cientista-chefe da entidade, Soumya Swaminathan, informou que os ensaios com a hidroxicloroquina foram interrompidos devido a problemas de segurança. “Não podemos colocar a vida das pessoas em risco”, disse. “Temos evidências suficientes para saber que não há nenhum impacto (da droga) em pacientes hospitalizados com a Covid-19”.

Apesar de todas as evidências em contrário, o presidente Jair Bolsonaro tratou novamente de defender a hidroxicloroquina em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da Organizações das Nações Unidas (ONU) e destacou, entre as iniciativas do governo contra a pandemia, o uso do medicamento no tratamento precoce dos doentes, como se fosse uma grande medida de combate à Covid-19. Ele declarou também que a pandemia deixa a grande lição de que não podemos apenas de umas poucas nações para a produção de insumos e meios essenciais para nossa sobrevivência. “Somente o insumo para a produção de hidroxicloroquina sofreu um reajuste de 500% desde o início da pandemia”, afirmou. “Nesta linha, o Brasil está aberto para o desenvolvimento de tecnologia de ponta e inovação”.

Cloroquina na ONU

Chamar a hidroxicloroquina de “tecnologia de ponta” ou dizer que ela é um “meio essencial para nossa sobrevivência” são evidentes exageros. A droga, usada contra a malária, foi sintetizada em 1946 e aprovada para uso médico em 1955, há 65 anos, e está longe de ser inovadora. Não há necessidade de aumentar as importações do remédio, como o governo vem fazendo. Além de não funcionar, a hidroxicloroquina apresenta altos riscos de problemas cardíacos nos pacientes. Seus efeitos colaterais podem ser muito mais graves do que os causados pelas vacinas que estão sendo testadas.

A meta do governo paulista é imunizar toda a população do estado até fevereiro do ano que vem. “Até 31 de dezembro teremos 46 milhões de doses da Coronavac e, até 28 de fevereiro, haverá 60 milhões de doses, o que é suficiente para imunização de todos os brasileiros de São Paulo”, afirmou Dória. “Já fizemos negociações com o Ministério da Saúde para que pudessem comprar mais 40 milhões de doses desta mesma vacina para permitir a vacinação de brasileiros de outros estados. E esperamos também que com o sucesso da vacina de Oxford e de outras vacinas o governo federal possa imunizar a totalidade dos brasileiros no menor tempo possível”, disse o governador.

Dimas Covas explicou que o princípio ativo da vacina será trazido concentrado da China e será diluído e separado em doses em uma nova fábrica do Butantan exclusiva para a Coronavac, que está sendo implantada com investimento privado e recursos públicos. O dinheiro privado vem de doações que já somam R$ 97 milhões. Outros R$ 80 milhões foram liberados para o projeto pelo Ministério da Saúde, a partir de uma solicitação de Doria. O que falta agora é a conclusão da fase 3 dos ensaios clínicos e o envio dos resultados para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a quem cabe liberar o uso da vacina. Há uma corrida contra o tempo para imunizar a população e a Coronavac é o produto, neste momento, que está mais perto de se transformar em uma realidade de cura. Já a cloroquina ficou, definitivamente, para trás.

“O desenvolvimento da Coronavac é uma demonstração de eficácia da ciência. Nunca se viu uma vacina ser produzida em um espaço tão curto de tempo” Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan