Inflexível, resmungão, retrógrado e adorável. O ator e diretor americano Clint Eastwood representa o mesmo personagem desde o início da carreira de astro do cinema: o anti-herói mal-humorado. Sua preferência fica mais evidente quando dirige filmes nos quais guarda para si o papel principal. A rotina se repete em “A Mula”, o primeiro filme em dez anos em que se posiciona a um só tempo diante e atrás da câmera. O longa-metragem marca a volta do rabugento que os fãs veneram.

Aos 88 anos, Clint já não possui o “physique du rôle” para viver o bandido misterioso que invade vilarejos do Oeste cenográfico da Cinecittà, nos filmes do diretor italiano Sergio Leone. Também não consegue mais defender o papel do fotógrafo sorumbático e conquistador que, ao chegar ao povoado de Madison, arrebata a primeira linda mulher casada que encontra.

Mas a saga continua. Magro e frágil, do alto de seu 1,93 metro, ele trocou mocinhos ambíguos por anciãos irredutíveis e tradicionalistas.

Foi assim que, em 2008, em “Gran Torino”, fez o viúvo que se irrita com vizinhos imigrantes do Laos. Quando um jovem da comunidade lhe furta o carro de estimação — o Gran Torino —, ameaça sofrer um surto de exterminador. Mas, como no fundo não passa de um caubói de boa índole, acaba por reabilitar o gatuno e livrar os novos amigos dos malfeitores.

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Da flor ao pó

Ele se baseou em um caso real para viver o personagem de “A Mula”, retratado na reportagem “A mula de 90 anos do Cartel de Sinaloa”, publicada no jornal The New York Times em junho de 2014. Clint trocou os nomes e ambientou a história em 2005. Earl Stone, de 87 anos, dedica-se de tal forma ao cultivo de lírios, que deixa de lado família em nome das exposições onde é festejado como um deus. Quando o negócio vai à falência, procura refúgio na casa da ex-mulher, sem saber que a neta festeja o noivado. Sai envergonhado, mas um convidado o aborda e lhe sugere uma solução:

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o cartel de Sinaloa usa idosos para carregar cocaína pela fronteira do México. Earl dirige a camionete com cautela e tem aparência insuspeita. Dizem que lembra o ator James Stewart (1908-1997), herói de Hollywood. Mas Earl é o avesso do bom moço. Tata, como é conhecido, passa a ganhar milhões e se divertir em orgias, sem remorso. Em doze viagens, trafica uma tonelada de cocaína. Assim, ganha a confiança dos chefões. “Que mansão!”, diz a Laton (Andy García), chefe do cartel. “Você deve ter matado muita gente para conseguir tudo isso.” Todos riem do atrevimento. Será o agente especial da polícia Colin Bates (Bradley Cooper) capaz de conter o delinquente senil?

Quando se auto-dirige, Clint costuma fazer o papel de Clint Eastwood. Não ele mesmo, o premiado cineasta de duas dezenas de grandes filmes de ação, o político republicano que foi prefeito de Carmel, Califórnia— onde cresceu —, teve sete filhos com cinco mulheres e se casou duas vezes. No cinema, apresenta uma projeção idealizada de si próprio: imagina-se como a materialização do hiperconservador individualista e dotado de bom coração. Seu personagem em “A Mula” busca redenção junto à família, troca pneus de um casal negro na estrada e arrisca um espanhol macarrônico para agradar aos comparsas — tudo para afirmar a liberdade individual. Perto dos 90 anos, Clint Eastwood sabe ser o protagonista que mantém a carranca e assusta, mas desperta compaixão.

Criminoso inspirou o filme

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O floricultor Leo Sharp (1924-2016) ganhou fama por duas façanhas. Durante duas décadas, cultivou e mesclou lírios que ganharam prêmios mundiais. Logo que a empresa faliu, ganhou, aos 87 anos, o título de “a mula mais velha do mundo”. Entre 2010 e 2011, transportou 960 quilos de cocaína e faturou US$ 3 milhões para o cartel de Sinaloa. Era conhecido como Primo Gordito, Viejo e Tata — este último adotado por Clint Eastwood. Sharp permaneceu um ano em prisão federal.

 


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