“Cleópatra era uma mulher inteligente, emancipada e sensual. Quando queria alguma coisa, sabia como obtê-la. Se vivesse hoje, deixaria marcas na política, indústria e economia” Alberto Angela, escritor e paleontólogo

Talvez não exista uma mulher real tão evocada como a rainha Cleópatra, nem proporcionalmente tão desconhecida. Ao longo de mais de dois mil anos, o fascínio da “femme fatale” que protagonizou uma das tramas de amor mais trágicas da Antiguidade só fez aumentar junto à humanidade. O mito é representado em pinturas, esculturas, afrescos, poemas, óperas, filmes e séries. Há dois mil anos, circulam versões da imagem da jovem sensual que prefere oferecer o seio à víbora venenosa a se entregar às tropas romanas que invadem Alexandria. Até que ponto tais variantes são verdadeiras? Quem foi Cleópatra, uma sedutora oportunista ou uma governante ambiciosa e genial?

A solução dos enigmas soa penosa. Isso porque a lenda soterrou a história de tal forma que a verificação se torna refém de hipóteses baseadas em relatos da época, mais ou menos fiéis. Além de textos esparsos, restam raros vestígios do tempo que Cleópatra viveu ­­— de 69 a 30 a.C. — ou ruínas do território que ela governou por 21 anos, nem mesmo múmias ou o mausoléu que mandou erguer ao lado do templo de Ísis em Alexandria, então capital do Egito, para jazer ao lado do amado Marco Antônio. Daí a dificuldade de recuperar a imagem e o papel que Cleópatra exerceu na transformação do mundo.

Decifrá-la tem sido o desafio que os especialistas enfrentam há cinco séculos, desde que a arqueologia e a paleontologia surgiram como disciplinas científicas. O paleontólogo italiano Alberto Angela traz à tona dados inéditos sobre o tema no livro “Cleópatra: a rainha que desafiou Roma e conquistou a eternidade”, lançamento da editora Harper Collins, originalmente publicado em 2018. Ele se vale de fontes inéditas para remover as camadas de signos ilusórios aplicadas sucessivamente por séculos e assim revelar a personagem verdadeira – ou, pelo menos, plausível. Surge a mulher atraente de baixa estatura, formas sinuosas, nariz pronunciado, olhar penetrante, voz de extrema suavidade e uma inteligência superior, capaz de inspirar o empoderamento feminino do século XXI. Mais do que isso, ela atuou como hábil negociadora internacional que não recuou quando teve de usar do poder de sedução para atingir objetivos políticos.

“Foi uma mulher que destoaria menos em nosso tempo do que no que ela viveu”, afirma Alberto Angela à ISTOÉ. “Ela se daria bem hoje como governante e empresária. É preciso lembrar que foi a rainha do reino mais rico de seu tempo, graças aos transbordamentos do rio Nilo, que proporcionavam diversas colheitas anuais e, por isso, atraía um número enorme de militares que cobiçavam sua fortuna para obter armas e conquistar o poder em Roma. Ela sabia jogar com a ambição deles, sempre exigindo que se mantivesse no trono.” Entre seus pretendentes, além de César e Marco Antônio, figuraram Cássio, Dolabella e Otaviano, o futuro Augusto, primeiro imperador romano — que ela tentou também seduzir.

Angela derruba pelo menos duas lendas. A primeira é de que Cleópatra seria egípcia. Na verdade, em seu tempo o Egito se encontrava helenizado. Cleópatra Tea Filópator (“Deusa que ama o Pai”, em grego) descendia do general Ptolomeu, que conquistou o Egito com Alexandre, 300 anos antes de ela nascer.
A linhagem ptolomaica impôs Alexandria como capital, bem como as instituições e língua gregas à vida diária. Cleópatra, a sétima a levar esse nome, foi a primeira de sua dinastia a ter aprendido a língua e a escrita egípcias, já arcaicas, para agradar aos súditos.

Outro dado novo diz respeito ao suicídio, uma das questões mais férvidas da historiografia antiga. Angela lança a hipótese de que a causa mortis de Cleópatra, ao contrário do que conta a tradição, não se deveu à picada da serpente, e sim por envenenamento. “Morreu instantaneamente, efeito que o veneno de cobra não produz”, afirma. “Como ela era especialista em poções, pode ter criado um coquetel de acônito, cicuta e ópio. Em seguida, ministrou a beberagem a suas criadas, que logo entraram em coma.”

Historicamente, Cleópatra assinalou “o fim de um reino e o início de um império”, segundo Angela. O encontro entre dois impérios distantes no tempo e no espaço se inicia com cenas de amor para terminar em morte e destruição. Cleópatra promoveu o improvável acasalamento entre o Egito Antigo e o nascente poderio de Roma. A rainha do Egito que gerou um filho com Júlio César, o chefe da república romana.

Com o assassinato deste, para defender o reino, uniu-se a Marco Antônio. Mas Otaviano destruiu Alexandria e o forçou a se apunhalar.

O suicídio de Cleópatra encerrou três mil anos de teocracia do Egito. Para além da ambição e do fracasso final, triunfou em uma sociedade dominada pelos homens e legou uma lição válida até hoje. “Ela nos ensina que a independência, a emancipação e, sobretudo, a cultura podem fazer a diferença em qualquer tempo”, diz.