POUCAS VAGAS Pacientes de Covid-19 são transportados às pressas para a UPA de Madureira (RJ), na segunda-feira, 29 (Crédito:Gabriel de Paiva)

O governo sofre um apagão gerencial em praticamente todas as áreas, mas nenhuma foi tão importante para minar a sustentação política de Jair Bolsonaro do que a pandemia. Já são mais de 320 mil óbitos, que fazem a Nação liderar as estatísticas negativas internacionais. Na última terça-feira, 30, o número diário de vítimas chegou a 3.668, novo recorde. O sistema de saúde está em colapso em diversas regiões, e piorando. Era inevitável que haveria um desdobramento político. A sociedade, o Congresso e o STF pressionam por mudanças, e foi isso que motivou o desastrado cavalo-de-pau do mandatário ao adotar um discurso pró-vacina, demitir Eduardo Pazuello e criar um comitê para coordenar a crise, anunciado com pompa e panelaços no dia 23.

CAOS Aglomerados, idosos tentam se vacinar em Duque Caxias (RJ), no dia 29 (Crédito:Domingos Peixoto)

Foi tudo um jogo de cena, e de má qualidade. Em poucas horas ficou claro que o teatro não visava nenhuma mudança concreta na Saúde, mas apenas salvar Bolsonaro e sua gestão, que está na iminência de um colapso. Os governadores não-bolsonaristas, que sequer foram convidados a integrar o tal comitê, logo denunciaram sua inutilidade. “Como nós podemos achar que há uma coordenação nacional sem estados e municípios, se lá estão os leitos?”, questionou Flávio Dino (PCdoB), do Maranhão. “O presidente não sabe o que é coordenação nacional”, sintetizou. O presidente da Câmara, Arthur Lira, que havia exigido a demissão de Pazuello e forçou uma mudança de rota do governo, foi mais pragmático ao perceber a temperatura subir no Congresso. Citou a “espiral de erros primários, desnecessários, inúteis, que são muito menores do que os acertos cometidos”. Foi direto ao ponto. Segundo ele, o Legislativo pode adotar remédios “amargos” (ou seja, a CPI da pandemia) ou mesmo “fatais” (ou seja, o impeachment, palavra que estava numa primeira versão do discurso). A crítica ainda cruzou a praça dos Três Poderes. Ao saber que o novo ministro, empossado na véspera, tinha a intenção de convocar um “pool da inteligência médica” para “ouvir a ciência”, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, ironizou: “Fico feliz de saber que com um ano de atraso e 300 mil mortos resolveram montar uma comissão de especialistas e médicos”. O ex-presidente da Câmara, Rodrigo Mais, também rechaçou: “Interessante como Bolsonaro quer responsabilizar a nova cepa como se somente agora estivéssemos vivendo um momento gravíssimo. Nem com muito esforço dá pra acreditar nessa narrativa”. Tinha razão. Uma semana depois da criação do comitê, após uma reunião de trabalho, o presidente voltou a contradizer o espírito de união dos líderes do Congresso e atacou governadores e prefeitos: “Algumas medidas têm superado, e muito, o que seria até mesmo um estado de sítio”, disse em pleno dia 31 de março. E voltou a criticar o isolamento social. Foi um constrangimento para Lira e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que tenta liderar o grupo de trabalho. Até para Queiroga.

Bolsonaro nunca acreditou na importância da vacinação. Só se mexeu quando João Doria começou a aplicar a Coronavac, em janeiro

CONTINUIDADE O novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, não se comprometeu com medidas de restrição (Crédito: Raul Spinass)

Projeções infladas de vacinas

Acuado, o presidente foi obrigado a trocar seis ministros e, para tentar reagir, avançou em seu projeto autoritário. Mas nada mudará no principal problema que aflige a população: a expansão da pandemia, que foge ao controle por culpa do próprio presidente. “2021 será o ano da vacinação” é o novo lema de Bolsonaro. Porém, a realidade contradiz o slogan. O Ministério da Saúde é desmentido constantemente pelas projeções infladas e irreais de recebimento dos imunizantes, comprados às pressas após um ano de sabotagem (na compra da Coronavac) e apostas erradas (em uma só vacina, a Oxford/AstraZeneca). O açodamento do governo negligenciou a disputa internacional por insumos e a dificuldade de produção local da Fiocruz. A última decepção ocorreu na terça-feira, 30, quando a Anvisa negou o certificado de boas práticas para a fabricante indiana da vacina Covaxin. Oito milhões de doses previstas em março foram frustradas, assim como 12 milhões para os dois meses seguintes — o valor do contrato, assinado de afogadilho, é de R$ 1,6 bilhão. E as ações oficiais, que beiram o amadorismo ou expressam má-fé premeditada, continuaram na gestão recém-inaugurada do médico Marcelo Queiroga. O novo ministro declarou que vai vacinar 1 milhão de brasileiros por dia e que tenta aumentar as entregas de imunizantes. Mas suas justificativas são débeis. Entre seus esforços, prometeu encontrar o embaixador dos EUA para tentar uma “permuta” que adiantasse a entrega dos imunizantes da americana Pfizer. A fabricante apenas afirmou que mantinha o seu calendário de entregas. Quase 80% dos 100 milhões de doses desse imunizante, contratados também à sorrelfa no último dia 15, só chegarão ao País entre agosto e setembro. No total, o governo trombeteia que adquiriu 562,9 milhões de doses para entrega este ano. Na prática, com as disputas no mercado internacional e as quebras de produção, é pouco factível que a promessa se concretize.

“Não ficaremos alienados. Os remédios políticos do Congresso são conhecidos e são todos amargos. Alguns, fatais” Arthur Lira, presidente da Câmara (Crédito:Pablo Valadares/Câmara dos Deputados)

O governo Bolsonaro colhe o que plantou. Ou melhor, deixa de receber as vacinas que se recusou a comprar no ano passado, quando especialistas alertavam para a importância da imunização e inúmeros países iniciaram a corrida por antídotos que se mostravam promissores. Bolsonaro nunca acreditou de fato na importância deles e disse isso com todas as letras, em várias ocasiões. Só se mexeu quando João Doria começou a aplicar a Coronavac. Essa disputa com o governador paulista ganhou outro capítulo no dia 26, depois que Doria anunciou um novo imunizante “100% nacional” a ser produzido pelo Instituto Butantan, pronto para entrar na fase clínica de testes. Quarenta milhões de doses podem ser fabricadas até julho. A notícia gerou uma justificada onda de otimismo, apesar da confusão sobre a procedência da pesquisa (o anúncio omitiu que a tecnologia era do Hospital Mount Sinai/EUA, com parceria do Butantan e cessão gratuita dos royalties).

“CONSCIENTE” O vice Hamilton Mourão se vacina com a Coronavac na segunda-feira, 29 (Crédito:Bruno Batista /VPR)

É um marco, pois a produção será feita integralmente no País, com know-how do instituto paulista e sem depender de insumos importados. Ao invés de comemorar, o presidente tentou criar um fato relevante para se contrapor. O ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, anunciou no mesmo dia ao lado de Queiroga o pedido de autorização para testes clínicos da vacina brasileira Versamune, desenvolvida pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, com verbas da pasta e parceria com a brasileira Farmacore e a americana PDS Biotechnology. É outra excelente notícia, que infelizmente não se reverterá na prática em um imunizante disponível este ano. E, principalmente, não reverte as ações nocivas do presidente.

Além de ter boicotado a Coronavac, Bolsonaro tem sistematicamente reduzido as verbas para pesquisas científicas nacionais. O próprio imunizante da USP de Ribeirão Preto poderia estar mais adiantado se o seu financiamento não tivesse sido atrasado pelo governo, afirmou um pesquisador à frente do projeto. Não é só. Desde o início da pandemia, o mandatário combate o isolamento e faz questão de dar o mau exemplo. Nesse período, promoveu 41 cerimônias no Palácio do Planalto com aglomerações. No dia 24 de fevereiro, na posse do ministro da Cidadania, foram 400 convidados, muitos sem máscara como Bolsonaro. Na sede do governo, até recentemente, “pegava mal” para os convidados usar essa proteção. O presidente segue prescrevendo o tratamento precoce, que inclui remédios sem eficácia comprovada, como o vermífugo Ivermectina. Esse kit Covid tem efeitos colaterais perigosos e já é responsável por aumentar a fila de pacientes à espera de transplante de fígado. O presidente também continua combatendo gestores que adotam medidas de isolamento. Para o dia 29, convocou “um dia de jejum e oração pelo bem e pela liberdade de nossa nação”. O proselitismo patriótico-religioso foi mais um ataque às medidas emergenciais. Seus apoiadores têm radicalizado para intimidar as autoridades. Em São Paulo, Doria anunciou que está de mudança para o Palácio dos Bandeirantes para evitar os arruaceiros diante de sua residência. No Ceará, a polícia investiga uma ameaça de morte contra o governador Camilo Santana, veiculada em um grupo intitulado “Ceará contra o lockdown”.

COLAPSO Hospital de campanha Pedro Dell’Antonia, em Santo André (SP), lotado com pacientes de Covid no dia 25 de março (Crédito:Edilson Dantas)

A irresponsabilidade incluiu até uma tentativa de causar rebeliões nas PMs. Foi o que ocorreu em Salvador, após um episódio nebuloso em que um policial se sublevou e atirou contra os colegas. A deputada Bia Kicis (PSL), que chegou à presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara patrocinada pelo Planalto, apressou-se em atribuir o incidente a uma revolta contra as restrições da pandemia. “Soldado da PM da Bahia abatido por seus companheiros. Morreu porque se recusou a prender trabalhadores. Disse não às ordens ilegais do governador Rui Costa da Bahia. Esse soldado é um herói”, ela tuitou. Com a péssima repercussão, apagou a mensagem. “O comentário foi precipitado por não conhecer os detalhes, irresponsável por incitar um motim e oportunista, querendo fazer palanque em cima de uma tragédia”, reagiu o senador Jacques Wagner. Eduardo Bolsonaro tentou ampliar a crise, divulgando: “Esse sistema ditatorial vai mudar. Protestos pipocam pelo mundo e a imprensa já não consegue abafar. Estão brincando de democracia achando que o povo é otário”. Foi mais uma manifestação que mostra, na prática, como o clã Bolsonaro tenta politizar a pandemia e instrumentalizá-la para atacar a democracia. Não é à toa que o mundo associa a tragédia brasileira com a liderança desastrosa de Bolsonaro. A chegada de Queiroga, um ministro “da continuidade”, reforça essa percepção. O presidente exige submissão incondicional e continuará ditando as políticas absurdas na Saúde com o novo preposto. Mudou para que tudo continuasse igual. O novo titular, pelo menos, usa máscaras e as recomenda (corretíssimo), mas diz que elas têm um efeito tão importante para conter a doença quanto a vacinação (engodo). Não apoiou as medidas emergenciais de lockdown. Em seu benefício, afastou parte dos militares que haviam desmontado as equipes técnicas.

DEBOCHE Sem máscara, Bolsonaro provoca aglomeração em cerimônia no Palácio do Planalto, no último dia 23 de fevereiro (Crédito:Divulgação)

Marketing enganoso

O governo agora tenta se adaptar ao novo marketing pró-vacina. O presidente e seus filhos têm destacado em suas redes sociais o número de doses distribuídas aos estados. Flávio Bolsonaro espalhou o slogan “nossa arma é a vacina” e usou uma foto do Zé Gotinha segurando uma seringa no formato de fuzil. Já o ministro das Comunicações, Fábio Faria, sugeriu a “criação de um consórcio para divulgar o número de vacinados”. Ignorava que já há um consórcio que faz isso, criado pelos veículos independentes exatamente porque o governo tentou suprimir os dados da pandemia. São medidas desesperadas. O Centrão já se deu conta de que sua intervenção branca no governo tem limites. Pressionou pela mudança no tratamento da Covid até como tábua de salvação, já que os empresários estão pulando do barco bolsonarista e as urnas em 2022 podem ser cruéis contra os negacionistas. Dessa forma, para que a doença seja enfrentada com eficiência, até o grupo fisiológico pode se dar conta de que não adianta trocar o titular da Saúde. É necessário remover o responsável pelo caos: o presidente.