A primeira escola de samba da qual se tem notícia foi criada em 1928 no bairro carioca do Estácio pelo injustamente esquecido Ismael Silva. Para quem não o conhece, uma amostra de sua genialidade como compositor: “analisando essa história, cada vez mais me embaraço, quanto mais longe do circo, mais eu encontro palhaço”. Desde então, o carnaval se propagou pelo País, teve longas fases, do “aval da carne” (grande roteiro de Ralph Justino e Carlos Marques) ao civilizado estágio atual do “não é não”. Eu não gosto de carnaval, fujo de multidões como gato foge de tamborim, cada um salvando a sua pele. Mas coloco-me a refletir sobre o nó na garganta dos foliões no ano que vem, uma vez que, acertadamente, o carnaval será adiado em todo o Brasil para evitar aglomerações que são os blocos preferidos do padêmico coronavírus.

Seria no carnaval que muitos brasileiros zerariam a eterna resiliência do ano todo, zerariam a resiliência da falta de emprego, falta de dinheiro, falta de amor, falta de luz, falta de sexo, falta de água, falta de família, falta de alegria, falta de álcool em gel, falta de comida, falta de honestidade de políticos, falta de falta de qualquer coisa, falta de ar. E então a maioria lavaria a alma. Sim, lavaria a alma para recarregá-la com nova resilência no evoluir dos próximos doze meses. E quanta gente já não andava cantarolando Chico Buarque: “e quem me vê apanhando, da vida, duvida, que eu vá revidar, tô me guardando pra quando o carvaval chegar”.

O carnaval foi adiado no Brasil pela primeira vez em 1912, devido ao falecimento do Barão do Rio Branco. O governo adiou a festa para o início de abril. O povo adorava Rio Branco pela expansão que deu às nossas fronteiras, e então aproveitou e pulou em fevereiro mesmo — e pulou novamente em abril. Agora, porém, é diferente, ninguém vai pular fora de hora (só Bolsonaro, mas esse já faz tempo que samba sozinho), porque está em jogo a sobrevivência física,
e não apenas cultural, de Pierrot, Colombina e Arlequim.

Eu me recordo, na minha infância, de meu pai ao violão e de minha mãe cantando Benedito Lacerda: “quarta-feira de cinzas amanhece, na cidade há um silêncio que parece, que o próprio mundo se despovoou”. Essa música me deixava triste e novamente me entristece quando me assalta o coração. Resiliência do distancamento, resiliência diante de milhares de mortes pela Covid-19, resiliência pela ausência do carnaval — que não deve e não pode acontecer mesmo. Repito que não gosto dessa festa, mas amo música. Trancado em meu apartamento, seguirei aquilo que o genial Carlinhos Vergueiro me ensinou a fazer nas horas de dor: “vou cantar meu samba”.

Isolado em meu apartamento, seguirei aquilo que o genial Carlinhos Vergueiro me ensinou a fazer nas horas de dor: “vou cantar meu samba”