A guerra na Ucrânia acontece nos campos de batalha, mas também na mídia e nas redes sociais. Com o avanço da tecnologia, que permite a rápida e ampla disseminação de informações, cresce o poder do audiovisual na construção da narrativa que sairá vitoriosa diante da opinião pública. Indicado ao Oscar em 2015, o documentário Winter on Fire (Inverno em Chamas – A Luta da Ucrânia pela Liberdade) explica com perfeição a origem da guerra e revela como a Ucrânia já estava mobilizada, ainda que limitada por seus precários recursos bélicos, para enfrentar a criminosa invasão da Rússia.

Em entrevista exclusiva à ISTOÉ, o diretor russo Evgeny Afineevsky falou sobre o impacto de seu documentário e comentou a situação atual do país. A seu pedido, o filme, antes exibido exclusivamente na Netflix, agora pode ser visto por todos, gratuitamente, no Youtube. Afineevsky não pode fornecer sua localização por questão de segurança – “não há local seguro no mundo, você pode ser envenenado em qualquer lugar” –, mas confirmou o tema do seu próximo projeto. “Estou filmando minha próxima história sobre a nação ucraniana”. Crítico ferrenho de Vladimir Putin, ele documentou outro conflito em que o autocrata russo estava envolvido: Cries From Syria, de 2017, traz imagens dramáticas da guerra civil no país de Bashar Al-Assad, onde Putin participou ativamente como aliado do ditador.

Afineevsky criticou também a postura do cineasta americano Oliver Stone, que culpou a OTAN pela guerra ao alegar que a entidade promoveu a expansão ao Leste Europeu. “Conheço bem essa situação. Por que essas pessoas, que elogiam tanto Putin, não pedem a cidadania e vão morar na Rússia?”, questionou. “Eles vivem nos EUA, usam seus status de americanos e desfrutam do dinheiro do capitalismo. Se é tão favorável ao outro lado, por que Oliver Stone não quer viver lá, sob as leis russas que ele elogia? Há artistas que gostam de elogiar Putin, mas vivem em sociedades livres. Quem elogia o ditador deve parar de ser hipócrita. Se você acredita em algo, então faça isso de verdade. Não finja que está do lado de Putin enquanto recebe seu pagamento em dólares.”

O diretor defendeu ainda o boicote aos colegas – o cancelamento de representantes da cultura russa tem sido uma realidade ao redor do mundo. “Compreendo os artistas. Nossa missão é construir pontes entre as nações. Infelizmente, para pressionar o governo russo temos de isolá-lo. É uma pena que os artistas paguem esse preço, mas é o único jeito. Normalmente eu seria contra esse tipo de coisa, mas hoje a pressão é necessária.” O Royal Opera House, de Londres, cancelou a temporada do ballet Bolshoi. Após se recusar a criticar a Rússia, o maestro Valery Gergiev foi demitido da Filarmônica de Munique. Em tempos de guerra, resta ao mundo ouvir as opiniões dos poucos russos que ainda têm coragem para criticar Putin – como o corajoso Evgeny Afineevsky.

Entrevista
Evgeny Afineevsky, cineasta

Divulgação

“Meu filme é um monumento à coragem do povo ucraniano”

Olá, Evgeny, tudo bem? Como estão as coisas por aí?
Exausto e quebrado em todas as frentes, podemos dizer.

Espero que você esteja em um local seguro.
Acho que estou, mas na verdade não há mais lugar seguro neste mundo. Você pode ser envenenado em qualquer lugar. Às vezes, a guerra pode ser mais segura que o ambiente pacífico onde você não está preparado. Confie em mim: todo mundo pode ser um alvo fácil. E você, como está? Como está o Brasil?

Estou bem. No Brasil temos problemas diferentes. Temos um presidente que apóia Putin. Me desculpe por isso, é inacreditável.
Bolsonaro, Ortega (Daniel Ortega, autocrata da Nicarágua) e outros líderes latino-americanos estão alinhados com Putin há anos.

No seu documentário, “Winter on Fire”, há cenas que mostram o início dos protestos na praça Maidan. Por que você decidiu filmar as manifestações?
É interessante. Um amigo me ligou e me disse que estava acontecendo algo importante. Ele me convidou para documentar as manifestações, ver se aquilo rendia um filme. Cheguei lá com a intenção de ficar apenas duas semanas. Ninguém imaginava o que ia acontecer. Os protestos começaram a crescer, foi como uma bola de neve rolando em frente aos nossos olhos. De repente, estávamos diante de uma revolução. Ninguém esperava que os estudantes fossem espancados pela polícia, nem que as igrejas esquecessem suas diferenças para salvar vidas. E então veio a “Marcha dos Milhões”, com uma grande multidão. Tudo se desenvolveu muito rápido, foi impressionante. E eu com a câmera na mão, registrando tudo. Percebi que aquilo tinha de ser preservado para a história. E foi assim que criei uma espécie de monumento artístico dedicado à coragem das pessoas, que estavam unidas e determinadas a vencer aquela batalha. Jovens e velhos, ricos e pobres, todas as classes sociais e as religiões. Todos juntos, lado a lado, lutando para alcançar o mesmo objetivo. Foi um exemplo notável do que a união pode realizar. Desejo que o mundo aprenda com isso e espero que o espírito de “Winter on Fire” possa encorajar o mundo a se unir mais uma vez. O que estamos vendo hoje pode acontecer em qualquer outro lugar. O exemplo ucraniano deve ser uma inspiração, podemos mostrar como o a união do povo leva à vitória.

Quando vi o filme, pensei: como você conseguiu chegar tão perto do conflito sem colocar sua vida em risco?
Às vezes, eu não percebia o perigo até terminar a filmagem. A adrenalina que corria nas minhas veias não me deixava ver os riscos. Sentia que estava documentando a história, fazendo uma homenagem às pessoas que estavam lutando. O filme era a minha maneira de contribuir para a causa, um monumento ao heroísmo e união do povo. Quando eu estava lá, não pensava no risco. Era mais loucura do que coragem.

“Winter on Fire” foi disponibilizado de graça no Youtube. Por que é tão importante ver esse filme agora?
Para aprender mais sobre a Ucrânia e sua história. Ver a determinação de um povo ao defender sua terra. A união de pessoas diferentes, o diálogo entre todas as religiões, a fé que uniu esses espíritos. Essa é a beleza de assistir ao documentário nesse momento. É importante para que o mundo inteiro possa defender a Ucrânia. Esse é um momento chave para qualquer ditador ou tirano. O que aconteceu na Ucrânia pode acontecer em qualquer lugar do mundo. Precisamos ensinar as pessoas a se defenderem, ensinar o povo a ser unir. Afinal, somos todos irmãos. Temos de lutar para não permitir que essas coisas se repitam. Caso contrário, amanhã pode acontecer em qualquer outro país. Pode ser na América Latina, no Brasil, nunca se sabe.

Está surpreso com a resistência civil dos ucranianos?
Sim. As pessoas preferem morrer a desistir. É fantástico. Essa guerra é um erro de cálculo de Putin, acho que ele pensou que poderia anexar facilmente a Ucrânia como fez com a Criméia e a região de Donbass. Estava errado, porque o povo ucraniano prefere morrer sob as balas a voltar a ser escravo dos russos. Sim, eles podem temer as balas, as bombas e os mísseis, mas o maior medo é de se tornarem escravos.

A guerra hoje não acontece apenas no campo de batalha, mas também na mídia, pela narrativa. Como você compara a atuação de Zelensky e Putin nessa área?

A guerra hoje é híbrida, como foi na Síria. Quando filmei o documentário “Cries for Syria” (2017), sobre a guerra civil, um personagem me disse: “no mundo de hoje a câmera se torna uma arma”. É verdade. O povo ucraniano está contando a história da guerra pelos meios possíveis, internet, celular, TV. Já a Rússia censurou todas as fontes de informação, exceto o canal oficial. Isso me lembra de 1939, é a típica cartilha de Joseph Goebbels. O chefe da propaganda nazista disse à época que a verdade era inimiga do estado. “Repita uma mentira várias vezes até que ela se torne verdade”, ele pregava. É bom lembrar que todo ditador moderno se guia por esse manual. É por isso que a Rússia proíbe as redes de TV de mostrarem o que está acontecendo no mundo. Tentam criar uma narrativa para controlar seu próprio povo. Enquanto Zelensky permite que todos filmem à vontade e documentem a verdade, Putin tenta suprimir os fatos censurando a mídia. Ele quer cortar todas as fontes internacionais de informação para manter os russos em um vácuo. Seu objetivo é criar uma história que possa ajudá-lo a influenciar as mentes russas.

Como a organização civil que aconteceu durante os protestos de 2013 ajuda o país agora, contra a invasão russa?
Os protestos da praça Maidan foram um grande exemplo. Depois do episódio, muitos ingressaram nas forças armadas e lutaram nos conflitos na região do Dunbass, que ocorrem desde 2014. Todas essas pessoas estão determinadas a vencer. Se em 2013 o protesto era local e acontecia apenas na área central de Kiev, hoje toda a Ucrânia está unida. É uma resistência total contra os inimigos russos.

A população da capital, Kiev, tem um sentimento pró-Europa. É assim no país inteiro? A Ucrânia é mais próxima da Europa ou da Rússia?
Toda a Ucrânia está lutando contra a invasão russa. Jovens, velhos, todos contra o inimigo russo que tenta conquistar a sua terra. Um bom exemplo da pressão de Putin sobre o seu povo é que jovens russos que protestavam contra a guerra na semana passada hoje estão presos. Os ucranianos são mais próximos do ocidente e nunca mais serão escravizados. Preferem morrer livres a viver como escravos. Para eles, a luta de cada indivíduo é a luta pelo futuro de seus filhos. A Ucrânia inteira está em guerra, liderada pelo espírito de todos os cidadãos. Estão dispostos a morrer pela liberdade de seu país.

As sanções econômicas foram mais duras do que qualquer um poderia imaginar. É uma arma importante contra a agressão russa?
Esse foi outro erro de cálculo de Putin. As sanções atingem a economia e isolam a Rússia. Ele não estava preparado para isso. Não acreditava que a Europa enviaria armas para a Ucrânia, nem que a União Europeia aprovaria sanções pesadas contra ele e seus oligarcas. Agora que a invasão foi consumada, porém, Putin luta desesperadamente. Tenta esmagar e matar o espírito do povo, mas não entende que os ucranianos preferem morrer a voltar a serem escravos russos. A prova de seu desespero é que ele está usando a mesma munição proibida contra civis que usou na Síria.

A temporada do ballet Bolshoi foi cancelada em Londres, o maestro Valery Gergiev foi demitido da Filarmônica de Munique. Boicotar artistas russos é uma estratégia válida?
Compreendo os artistas. Estamos sempre tentando construir pontes entre as nações. Infelizmente, para pressionar o governo russo, a única maneira é evitá-los e isolá-los. É uma pena que os artistas paguem esse preço, mas é o único jeito. Sou contra esse tipo de coisa, mas esse tipo de pressão é necessária.

Cineastas como Oliver Stone e outros artistas de esquerda tentam legitimar Putin alegando que o conflito é culpa da OTAN por sua expansão para o leste europeu. Qual é a sua opinião?
Conheço bem essa situação. Por que essas pessoas, que elogiam tanto Putin, não pedem cidadania e vão morar na Rússia? Eles vivem nos EUA, usam seu status de americanos e desfrutam do dinheiro do capitalismo. Se concorda com o outro lado, por que Oliver Stone não quer viver lá? Eles gostam de elogiar Putin, mas desfrutam de sociedades livres. Por que não vão para lá e experimentam viver sob as leis russas? Quem elogia o ditador deve viver sob o ditador. Quem acha que ele não é um ditador, mas a pessoa mais humana do mundo, deve parar de ser hipócrita. Se você acredita em algo, então acredite de verdade. Não finja que acredita em Putin enquanto recebe seu pagamento em dólares.

Antes de ser eleito, Zelensky tinha uma carreira na área artística. Como a experiência dele como ator ajuda a projetar a bem sucedida imagem da Ucrânia?
Conheço Zelensky. Nossa amizade vem de muito antes de ele se tornar presidente, quando ainda era apenas um ator de sucesso. Saíamos juntos sempre que eu estava em Kiev. Admiro sua postura, é a maior prova de que ele amadureceu como ser humano e como político. Sua liderança não vem das palavras, mas de suas ações. Ele está provando que é um grande líder de uma nação ocidental, que merece fazer parte da União Europeia. Ele aprendeu na prática. A coisa mais bonita que vimos durante a guerra foi sua dignidade, que tornou-se inspiradora para o povo ucraniano.

Quais são os cenários possíveis para esta guerra? Você acredita em um conflito longo?
Quando os protestos na praça Maidan começaram, ninguém sabia aonde iriam parar. Demoraram 93 dias e terminaram com a renúncia de Yanukóvytch. Não acredito que essa será uma guerra rápida, como Putin planejava. Ele achava que tomaria Kiev em poucos dias, mas acho que levará meses.

O ex-presidente Víktor Yanukóvytch, que renunciou após os protestos de 2013, faz parte do plano pós-guerra de Putin?
Ele sempre fez parte do plano. Na semana passada, compareceu a um tribunal exigindo ser reempossado como presidente. Ele quer voltar a controlar a Ucrânia, mas obedecendo cegamente a Putin.

Apesar de estarmos longe do conflito, há algo que os brasileiros podem fazer para ajudar os ucranianos?
Muita coisa. Sair às ruas e protestar contra Bolsonaro, que é aliado de Putin. Impedir o Brasil de importar bens e produtos russos. Boicotar produtos que vem de lá. Garantir que tropas brasileiras não serão enviadas para apoiar Putin. Participar de campanhas humanitárias. Não estou pedindo dinheiro, não queremos que pessoas de países com seus próprios problemas contribuam financeiramente. A melhor opção é protestar contra a guerra.

Uma última pergunta. Por favor, responda sem mencionar sua localização ou colocar sua situação em risco. Qual é o projeto você está envolvido agora?
(Pausa)

Estou filmando minha próxima história sobre a nação ucraniana.