08/09/2017 - 11:03
A cineasta Susanna Lira avalia que, no Brasil atual, é difícil contar histórias boas, e considera que a crescente intolerância sexual, religiosa e social alimenta uma violência endêmica, embora acredite que o país poderá sair mais maduro deste processo.
Em seu documentário “Intolerancia.doc”, de 2016, a diretora carioca de 46 anos acompanhou uma brigada da Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), de São Paulo, que investiga grupos organizados autores de ataques racistas ou homofóbicos.
Sua obra segue o rastro das vítimas e agressores, e de suas famílias, através de casos emblemáticos: um ícone punk esfaqueado por neonazistas, um jovem gay espancado até a morte, ajustes de contas entre torcidas organizadas no futebol.
Lira recebeu esta semana a AFP em sua produtora, Modo Operante, em Copacabana.
P: O Brasil está caindo em um estado de barbárie?
R: A gente sempre vendeu a imagem para o mundo de que éramos um país que aceitava as pessoas como elas eram, de certa maneira que não tinha racismo e que havia um estado de harmonia entre as diferenças no Brasil. Só que quem passa cinco minutos no Brasil percebe que isso é uma lenda, porque acho que de fato nós sempre fomos bastante intolerantes (…) Isso já estava na forma com que fomos colonizados. Em relação aos índios por exemplo, não respeitando a sua religião, a sua forma de viver (…) E nós somos o país que mais escravizou no mundo, e durante mais tempo.
Eu acho que a gente passou muito tempo vendendo essa imagem porque a gente tem essa alegria do Carnaval, as pessoas se misturam, mas, de fato, as pessoas nunca estiveram incluídas (…) No momento em que elas tentam sair desse lugar, sendo negros empoderados, mulheres empoderadas, gays querendo sua liberdade, obviamente todo o sistema reage, e isso que é para mim o retrato da intolerância no Brasil de hoje.
P: Seu filme se centra em São Paulo, mas o que se vê diariamente é uma violência muito maior no Rio.
R: Falar sobre intolerância é muito complexo, é um tema muito abrangente. Por isso escolhi o trabalho dessa delegacia [a Decradi] porque acho que dizer que a gente tem esse tipo de delegacia para crimes de intolerância na cidade mais livre do Brasil, teoricamente mais civilizada, onde as cabeças pensantes mais interessantes estão, significa muito sobre esse momento que a gente vive hoje no Brasil, e que infelizmente também se vive no mundo.
A Decradi mapeou 23 grupos organizados e de ódio. Isso para mim é um dado muito forte. O que a gente tem no Rio, são pessoas intolerantes que cometem crimes fatais; a briga de torcidas, que também é considerado crime de intolerância, mas a gente ainda não tem grupos organizados. De vez em quando há um grupo neonazista em Niterói (…), mas não é como em São Paulo. (…)
O tipo de violência que se tem no Rio de Janeiro é ligado ao tráfico de drogas e a guerra do tráfico de drogas é uma guerra econômica, pelo poder de quem vende essa droga. E acho que com a liberação das drogas isso seria bastante amenizado.
P: O filme não trata de crimes raciais.
R: Sim, não nesse filme, mas no Brasil tem muito crime racial. (…) Na Decradi, o segundo maior índice de denúncia é contra crimes raciais. O primeiro, homofobia. O Brasil é o pais que mais mata trans, gays e LGBT combinados no mundo [346 em 2016, segundo o Grupo Gay da Bahia].
P: Há uma guerra no Brasil?
É difícil falar, porque de uma certa maneira quando você fala que está vivendo um guerra você está legitimando um Estado. Para falar de intolerância, eu acho que é uma outra questão. Eu acho que nos últimos cinco anos, a gente tem visto políticos de direita ultraconservadores. A bancada evangélica no Brasil é muito forte. Um político [o deputado Jair Bolsonaro] teve mais de 400.000 votos no Rio de Janeiro, e tudo o que esse político fala em relação às mulheres, aos gays… a gente já vê movimentos de jovens votando nessa pessoa, e isso me assusta. Isso para mim é o estado de barbárie.
P: Como se passa da intolerância para a violência?
R: Quando diz a pesquisas para fazer o filme, houve uma onda de linchamentos no Brasil (…) Isso era uma preocupação, que quando se fala de direitos humanos, as pessoas dizem que você está defendendo bandidos. Essa é uma questão no Brasil muito séria. (…) Quando a sociedade desacredita da justiça, da polícia, dos políticos, ela começa a agir pelas próprias mãos…
P: Poderia me contar uma história boa?
R: (rindo) É um desafio contar uma história boa. Mas eu acho que muito do que se está construindo neste país até agora (…) Essa questão do empoderamento feminino, esse feminismo novo, da ascensão dos negros em lugares importantes, a questão do cuidado das mulheres nas empresas, essas são coisas que não vão tirar da gente… Não sou uma pessoa pessimista em relação à vida, nem à sociedade. Eu acho que a gente está passando por um momento muito difícil, importante e necessário. É uma prova para nós brasileiros, do que queremos como país (…) Mas acho que vamos passar por isso mais amadurecidos, como um país mesmo. A gente está no meio de um ataque muito forte, mas vamos sair vivos dessa. Acho.