Cidades inteligentes: máquinas de lucro ou de loucos?
Ilustração: Walter Rego

Da interação entre cidadãos e as infraestruturas urbanas surge o mais cobiçado recurso natural de nossa época. Se, como se diz, os dados são o novo petróleo, as cidades, por sua densidade demográfica, são os campos de extração por excelência. Ao invés de plataformas petrolíferas – instaladas em locais específicos do globo, muitas vezes em territórios de permanente conflito – os dados urbanos são extraídos por meio de uma densa – e também global- rede de telecomunicações e processados em complexos industriais de refinamento de dados. A internet que usamos é apenas a interface social desta trama planetária de ramais de fibra ótica, satélites, data centers, smartphones e até daquelas discretas etiquetas de radiofrequência que encontramos no rótulo de tantos produtos de prateleira.

Nesse cenário, é ingênuo hoje acreditar que a feroz competição pelo controle e produção de tamanha riqueza, o Big Data , não produza consequências desestabilizadoras no ambiente social – da mesma forma como a disputa pelo petróleo desestabiliza o Oriente Médio. Dados influenciam cenários. No Brasil e no mundo pipocam casos de disrupção da ordem política, de fake news, de dependência emocional de redes sociais, de cibercrimes.

Não poderia ser diferente. A sociedade é hoje campo de provas de uma quantidade crescente de novas neurotecnologias de captação e recirculação de dados, testadas e balanceadas com relativa liberdade por distintas companhias de hardware e serviços de software. Sejam elas estatais ou privadas, as organizações que progressivamente controlam os ambientes urbanos de experimentação tecnológica em dezenas de milhares de cidades pelo mundo, aplicam o aprendizado extraído dos complexos padrões de comportamento humano no desenvolvimento de novas estratégias para incremento escalar de eficiência operacional, redução de riscos de investimentos e a maximização da rentabilidade. A cidade inteligente promete sustentabilidade sim, mas apenas para quem detiver capacidades robustas de atuação em um ambiente competitivo de inovação tecnológica. E no meio do caminho, as pessoas. O que fazer com elas?

Mesmo que seja errado atribuir à tecnologia a responsabilidade total pelo atual estado de turbulência e conflito em que vivemos, devemos nos perguntar se os parâmetros e requisitos que alimentam o imaginário da cidade inteligente ideal de fato contemplam algumas das consequências mais disruptivas da expansão da conectividade digital no comportamento social. Seriam estas resultado de caos ou de cálculo? E qual o papel da comunicação aí?

Alguém poderia afirmar que a atual crise social é consequência da aceleração alucinante das comunicações interpessoais, que eliminaram destas relações o fundamental “pensar antes de falar” sem colocar algo equivalente no lugar. Se atentarmos para a impulsividade e ansiedade que turbinam nossas conversas no WhatsApp e atentarmos também para as imprevisíveis consequências de prover todo cidadão, independentemente de escolaridade, renda, crença, com capacidades técnicas de broadcasting – podemos facilmente concluir que instrumentos de comunicação instantânea e remota, em si, não produzem uma melhor qualidade da comunicação interpessoal na sociedade.

Desde os idos de 2010 houve um notável crescimento do debate público no Brasil, quando o WhatsApp começou a anabolizar o bastante repetitivo conteúdo administrado diariamente pelos canais tradicionais de comunicação. Neste processo, é inegável o poder da internet móvel – afinal, já somos mais de 200 milhões de aparelhos smartphone. Se observarmos o que ocorreu nestes últimos 8 anos no Brasil, fica nítido que a internet é efetivamente um revolucionário catalisador de transformações culturais.

Podemos então nos satisfazer com o grande aporte de interesse que a população brasileira destinou às suas classes dirigentes no último processo eleitoral? Sem dúvida. Mas também ficou bastante claro quanto um celular pode ser usado como uma arma. A população “armou-se” com suas opiniões e a consequência é que somos um dos maiores mercados de telecomunicações do mundo, com sua lucratividade baseada não na inovação, mas na intensidade da circulação de conteúdos prosaicos de altíssima volatilidade.

Mas qual é o problema? O problema é que ainda acreditamos que mandar mensagens é um ato banal, sem consequências. O WhatsApp, mais que um “serviço de mensagens”, é um poderoso instrumento de disseminação de ideias e coordenação de ações reais, concretas, no espaço público e privado. Está ficando mais claro que quando diminuímos os intervalos entre as comunicações interpessoais, aceleramos também os processos de tomada de decisão em todo o espectro da sociedade.

Como raciocinar tendo em mãos uma ferramenta – o smartphone – desenhada para produzir comportamentos impulsivos? Esse transmissor/receptor de longo alcance não estaria nos induzindo a tomarmos decisões fracas, de curto alcance? Quanto de acesso a real inteligência o atual modelo de comunicações permite a um cidadão? E como essa informação efetivamente se traduzirá em comunicação inteligente? Ainda estamos longe das respostas.

Porém, mesmo que já esteja além da capacidade do cidadão compreender um ambiente onde interagem galáxias de comportamentos semi-conscientes induzidos pela “tecnologia”, não podemos perder de vista que em abril deste ano a quinta geração de transmissão de dados, a velocíssima e altamente aguardada tecnologia 5G, entra em uma nova fase de implementação. Para entender sua importância, sem essa tecnologia não há internet das coisas, não há carro sem motorista, não há cidades inteligentes – pelo menos não da forma projetada pela indústria. Como ela será implementada no meio urbano ainda é uma incógnita, pois exige que se integre leis, regras, regulamentos, normas e instituições que até agora estão em conflito. O projeto de Lei 00830 de 2017, do Vereador Eduardo Tuma (PSDB) – atual presidente da câmara legislativa – é um esforço pioneiro, no âmbito do município de São Paulo, de legislar sobre a questão da tecnologia no espaço urbano.

Embora o projeto traga contribuições interessantes, mas um tanto saudosistas, como a criação de um Conselho Municipal de Cidade lnteligente (CMCI) e que também disponha sobre as urgentes questões do uso de dados e da provisão de infraestrutura, a questão do “impacto social” ao longo do processo de transição para uma cidade hiperconectada é mencionada de maneira protocolar. Subestimar a importância deste fator é um perturbador sintoma de uma compreensão anacrônica da amplitude do fenômeno digital. Hoje, entre as principais consultorias de inovação em atuação na capital paulista, sabe-se que uma enorme barreira para a transformação digital, seja das cidades, seja das empresas, é cultural, é comportamental, no nível individual e corporativo. É o fator humano.

Acreditar que aprenderemos “naturalmente” a viver em um ambiente homogeneamente saturado de conectividade é não apenas uma aposta perigosa no comportamento irracional incentivado por nossos dispositivos digitais, como também uma fantasia que adquire contornos cada vez mais sinistros. Até quando a insalubridade do meio digital continuará sendo atraente para novos usuários? É a própria credibilidade da economia digital que está em jogo em seu movimento de conquista do espaço urbano.

Um plano consistente de “smartificação” de uma cidade deve, antes de converter-se apenas em máquina perfeita de comoditização da vida urbana e de produção de dados para suporte de operações financeiras, estimular abertamente o desenho de estratégias de comunicação de curto, médio e longo prazo para o enfrentamento da pane cognitiva que explode a sociedade global.