Canaã dos Carajás teve expansão estratosférica do PIB per capita por causa de minério de ferro. Mas desigualdade persiste – e analistas temem fim do "boom".Wellington Rochedo, 32, decidiu se mudar para Canaã dos Carajás em 2016. Ele esperava prosperar no município paraense que foi palco do crescimento mais veloz e exponencial da riqueza por habitante no Brasil em 12 anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O PIB per capita da cidade cresceu 2.803% entre 2009 e 2021 – por causa dos negócios envolvendo a extração de minério de ferro na região. O indicador mensura uma divisão hipotética do total de recursos de um lugar entre todos os que vivem ali.
Mas fontes ouvidas pela DW apontam que essa riqueza não teve efeito na vida da população, como reduzir a desigualdade ou dar acesso a serviços básicos, por exemplo. "E daí você vê que essa numeralha (sic) não se reflete em desenvolvimento", alerta Marco Antônio Lima, que leciona sobre arranjos produtivos locais e projetos ligados à sustentabilidade na Universidade do Estado do Pará (UEPA).
"Na verdade, quando a economia vai bem, a renda per capita explode como reflexo do crescimento, mas mascara a distribuição real dos recursos, que permanecem altamente concentrados. Infelizmente, é isso que acontece nos grandes projetos mineradores do Pará", continua.
Em busca de uma vida melhor
Convencido por um amigo de infância e desiludido com várias tentativas anteriores de trabalho, Wellington pegou um trem em São Luís do Maranhão, onde morava, com a esposa, Jocyelen Costa (29) e o filho Ryan, então com seis anos.
Hoje, Wellington é gerente de uma loja de materiais de construção, com um salário de cerca de R$ 3 mil. Jocyelen também se encontrou em Canaã: abriu, nos fundos da casa, um salão de design de sobrancelhas. No fim do mês, aumenta o orçamento doméstico em cerca de R$ 1,5 mil. "Eu queria estar melhor, é verdade, mas a vida aqui deu uma boa melhorada. Não posso reclamar", observa Wellington.
Segundo maior PIB per capita do Brasil
Assim como o gerente, milhares de jovens, sobretudo da região Norte, têm ido a Canaã dos Carajás pelo menos desde 2015. Eles são encorajados por relatos de quem já foi, por posts de redes sociais ou pelos anúncios vultuosos que a Vale faz, ano sim, ano não, sobre seus investimentos na região.
É ali que a empresa, a quarta mais valiosa e a décima maior mineradora do planeta, segundo o portal mining.com, opera o complexo de exploração de minério de ferro mais moderno no país: o S11D. Só no primeiro trimestre de 2025, a estrutura produziu 19,3 milhões de toneladas, 9% mais do que no mesmo período do ano anterior e a maior quantidade produzida num primeiro trimestre pelo projeto.
"E tem muito dinheiro aqui, hein?", constata Wellington.
De fato. Em 2009, segundo números oficiais, se toda a riqueza da cidade fosse dividida de forma igual entre seus habitantes, o montante que cada um receberia seria de R$ 30.821.
Em 2021, porém, o PIB per capita de Canaã dos Carajás chegou a R$ 894.806.
Para se ter uma ideia, o PIB per capita de todo o estado do Pará era de R$ 29.953 em 2021, na última medição oficial. No Brasil de 2022, ele era de R$ 47.802, de acordo com o instituto.
Além do crescimento de quase 3.000% em relação a 2009, o indicador também impressiona pela ascensão em apenas um ano. Em relação a 2020, o PIB per capita registrou alta nominal de 51,5%, de acordo com o relatório PIB Municipal 2021, divulgado pelo governo do Pará e pela Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa).
O PIB per capita de Canaã dos Carajás é o segundo maior dentre todos os municípios brasileiros, mas foi o que cresceu mais rápido e de forma mais vertiginosa. O indicador de Canaã fica atrás só de Catas Altas, em Minas Gerais (R$ 920.833) e à frente de outra cidade mineira: São Gonçalo do Rio Abaixo (R$ 684.168).
Todas elas são ricas em minério de ferro. Atrás da soja e do petróleo cru, essa commodity foi a terceira maior fonte de recursos do Brasil no mercado internacional em 2024 (com quase 30 bilhões de dólares em exportações, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços).
Contradição entre riqueza e pobreza
Apesar do potencial dos minérios, um problema comum apontado por especialistas é a ineficiência do poder público local em aplicar recursos que, por lei, são distribuídos às cidades mineradoras. O mais relevante deles é a Contribuição Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), ou os chamados royalties dos minérios.
No ano passado, segundo a Agência Nacional de Mineração (ANM), o município de Canaã dos Carajás recebeu, sozinho, mais de R$ 1,27 bilhão da CFEM. "E como esse dinheiro está sendo investido na cidade?", questiona Cristiane Faustino, coordenadora do Instituto Terramar, no Ceará.
Alguns poucos indicadores dão pistas dessa contradição entre a riqueza de um PIB per capita tão alto e a pobreza da realidade das pessoas. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) oficial mais recente de Canaã, de 2010, foi de 0,673. A escala vai até 1. Naquele ano, apenas um terço (35%) da população contava com coleta adequada do esgoto, por exemplo, enquanto 40% das pessoas cruzavam cada mês com metade de um salário mínimo (R$ 255 à época).
Seis anos depois, a Vale já estava prestes a inaugurar a mina S11D (Serra Sul). É o maior projeto da história da companhia, com um investimento total de US$ 79 bilhões, em valores atuais.
Mesmo com tanto dinheiro e tempo depois, o IDHM permanecia quase o mesmo: tinha crescido timidamente 1,48%, para 0,683, segundo relatório do Sistema Firjan, não-oficial, mas que usa a mesma metodologia do IBGE. A última medição oficial do IBGE é de 2010.
"É que uma parte pequena da cidade ganha muito bem. São essas pessoas que movimentam a economia da cidade, inclusive. É curioso notar, por exemplo, o alto padrão dos hotéis, para receber diretores da mineradora, representantes de empresas terceirizadas e outros atores ligados à mineração", explica João Paulo Loureiro, professor da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA).
"Mas, por outro lado, quase metade das famílias da cidade depende de auxílios públicos, como Bolsa Família, por exemplo. Sem contar a grande quantidade de gente que trabalha informal, vendendo comida, tocando um pequeno negócio. Existe um abismo entre essas duas realidades", completa.
Há três anos, quando o IBGE atualizou seu painel, os dados revelaram que, em 2022, se mantinha aquele mesmo número de 35% de pessoas sem acesso a esgoto tratado. Naquele ano, pelo menos 11 mil famílias viviam ali com metade de um salário mínimo (cerca de R$ 700).
Questionada sobre os projetos desenvolvidos a partir do dinheiro do CFEM, a Secretaria de Desenvolvimento Social da prefeitura de Canaã dos Carajás não retornou até a publicação desta reportagem.
Em nota, a Vale reforçou que apoia o município desde que iniciou as operações em Canaã, com diferentes projetos. Eles envolvem áreas como educação, saúde, emprego, esporte e lazer e segurança. A companhia disse ainda que "investiu em um conjunto de obras em parceria público-privada local, como a construção e reforma de oito escolas municipais e reforma e ampliação do hospital público municipal".
"Para explicar tudo, é preciso entender como isso aqui surgiu", sentencia Marco Antônio Lima, da UEPA.
Uma metamorfose em dez anos
A metamorfose de Canaã dos Carajás foi veloz – levou cerca de uma década.
O município nasceu na década de 1980, durante o projeto Grande Carajás, tocado pela Vale por ordem do regime militar. A então vila de Canaã dos Carajás permaneceu como distrito de Parauapebas até 1994. Parauapebas era a última estação da Estrada de Ferro Carajás, administrada pela Vale. Na década de 2010, a Vale já tirava dali 110 mil toneladas de minérios de ferro por ano.
No começo dos anos 2000, porém, a operação de Parauapebas tinha ficado custosa para a Vale, principalmente pela dificuldade tecnológica. A empresa não demorou a chegar a Canaã, atraída por estudos que mostravam que havia minérios de alta qualidade na região.
Quatro anos depois, veio o primeiro anúncio: havia na cidade uma mina com potencial de produzir 140 mil toneladas de cobre por ano – um metal com o qual a empresa jamais havia trabalhado na sua história.
"Foi um êxtase coletivo, um vislumbre. Você andava pela cidade e via as pessoas esperançosas", relembra Loureiro. "Havia uma ideia comum – tanto aqui quanto nos estados vizinhos – que o dinheiro ia circular e que todo mundo ia prosperar".
Não muito tempo depois, a Vale colocou a Mina do Sossego, onde havia achado o cobre, em operação. Em 2008, ela produzia metade de todo o metal no Brasil, para vender, sobretudo, aos chineses, escoando-o pela ferrovia até o Maranhão.
"Mas daí veio a revolução", conta Loureiro.
Crescimento exponencial
Por volta de 2015, o trem da Vale já chegava a Parauapebas sempre abarrotado. Eram trabalhadores de outros estados do Norte que desembarcavam para ajudar na obra do complexo Serra Sul Eliezer Batista, o S11D – o maior investimento privado da história brasileira –, destinado a extrair minérios de ferro de Canaã.
Naquele ano, a euforia do cobre da Mina do Sossego havia sido superada pela dos minérios que, segundo pesquisas, têm um grau de pureza ali muito maior do que em outras regiões do país – e até do mundo. Foram eles que mudaram o "patamar" de Canaã, como dizem relatórios da época.
Segundo a própria Vale, em torno de 14 mil pessoas participaram da construção da estrutura da S11D até a sua inauguração, em janeiro de 2017. Além de maior, o complexo também é considerado até hoje o mais moderno do Brasil.
Não foi à toa que a população de Canaã cresceu 188%: saiu de 26,7 mil em 2010 para mais de 77 mil no Censo de 2022 do IBGE. A própria cidade precisou se alargar, triplicando o número de domicílios no mesmo período (10,3 mil para 28,6 mil). O IBGE diz que nenhum outro município cresceu tanto, proporcionalmente, no Brasil, nesse intervalo de tempo.
Como veio a riqueza
Foi também quando a riqueza surgiu. Se hoje o CFEM de Canaã é de mais de R$ 1 bilhão, ele não passava de R$ 17 milhões em 2010. "O primeiro efeito dela foi uma bolha imobiliária", conta Loureiro.
Pesquisas feitas em universidades da região mostram a evolução paralela de realidades discrepantes. Enquanto muitos trabalhadores não qualificados iam engrossando bairros pobres, em beiras de rios, uma nascente classe média alta, ligada às atividades mineradoras do complexo, se ilhou em condomínios de luxo.
"É que, para cada trabalhador qualificado, treinado e contratado pelas regras da CLT que veio naquela época, chegaram outros dois ou três sem qualificação", explica Marco Antônio Lima.
Consequências sociais e ambientais
A Vale diz que tem cerca cinco mil trabalhadores em Canaã dos Carajás hoje e outros 7,4 mil nas suas minas de Parauapebas, de onde extrai também metais como manganês e ouro.
Mas, conforme a S11D crescia, mais problemas sociais foram a consequência, como aumento da violência e exploração sexual de crianças e adolescentes, enumerados pelas fontes ouvidas pela DW.
Impactos ambientais também aumentaram. Cristiane Faustino se recorda de vários deles – da poluição de rios, das mortes de animais, do uso da terra –, mas um foi especialmente marcante para ela: o trem. "São vagões enormes que passam por dentro dos bairros jogando pó de minério de ferro para todo lado. Aquele pó faz muito mal para as pessoas. Era uma reclamação constante", diz. "E o trem precisa de uns 20 minutos para atravessar o território. Eu me lembro de olhar o ar, cheio de partículas, e ficar impressionada".
Questionada especificamente sobre esse aspecto, a Vale respondeu que faz um "monitoramento contínuo da qualidade do ar ao longo da estrada de ferro Carajás", e que adota "todas as ações necessárias para controle das emissões de material particulado, tais como umectação de vias e aplicação de polímero nos vagões carregados com minério".
"Nossa vida são ciclos"
No começo de fevereiro deste ano, João Paulo Loureiro notou que os preços dos imóveis dispararam de novo em Canaã de Carajás e em Parauapebas. Ele, que se prepara para lançar seu primeiro livro, Mineração na Amazônia brasileira: riqueza econômica versus população vulnerável, não demorou a achar uma possível explicação.
É que a Vale anunciaria, dali alguns dias, um investimento de R$ 70 bilhões no seu Programa Novo Carajás, para um período de cinco anos, em um evento em Parauapebas com a presença do presidente Lula. Canaã dos Carajás está no centro do projeto por causa da S11D.
No evento de fevereiro, a Vale reforçou que o dinheiro investido em Carajás tem um novo sentido: ao produzir mais cobre e de minério de ferro de alta qualidade, também chamado de "aço verde", a empresa colabora para fornecer materiais "essenciais à transição energética e para a redução de emissões de carbono".
Mas o professor permanece cético. "Nosso território não tem vida própria. Nossa vida são ciclos, sempre dependentes desses anúncios. Agora é a época da euforia, mas nós já vivemos isso outras vezes. Vai passar."