A Procuradoria-Geral da República suspeita que o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ivo de Almeida, alvo da Operação Churrascada, usou o próprio filho, Ivo Júnior, para lavar dinheiro supostamente arrecadado em propinas por venda de sentenças.
Segundo a PGR, o magistrado constituiu uma pessoa jurídica – Citron Residence Incorporações SPE Ltda, empreendimento imobiliário situado na zona Leste da capital paulista – que teria sido usada por ele para o ‘recebimento de vantagens indevidas e para lavagem de dinheiro’.
O criminalista Átila Machado, que defende o desembargador, classificou a denúncia de ‘rematado absurdo’ e a investigação da Polícia Federal de ‘tendenciosa’. Ao Estadão, Átila Machado afirma que ‘restou sobejamente provado que nunca houve venda de sentença ou qualquer tipo de favorecimento por decisão judicial proferida pelo desembargador Ivo de Almeida’ (LEIA ABAIXO A ÍNTEGRA DE SUA MANIFESTAÇÃO).
Ivo Júnior aparece formalmente no quadro societário da Citron Residence, detentor de cota social correspondente a R$ 225 mil.
“Para dissimular a propriedade e a origem dos valores movimentados pela pessoa jurídica, Ivo de Almeida valeu-se de seu filho Ivo de Almeida Junior”, afirma a subprocuradora-geral da República Luiza Cristina Frischeisen, que assina denúncia de 147 páginas contra o desembargador.
Ivo Júnior, diz a acusação, incorporou ao seu patrimônio um apartamento, especificamente a unidade 104, e uma vaga de garagem vinculados ao empreendimento.
“Trata-se de expressão patrimonial absolutamente incompatível com os rendimentos lícitos declarados de Ivo Junior, que não teria capacidade financeira para o investimento ou para as aquisições a ele relacionadas”, diz a PGR.
A Operação Churrascada é uma investigação da Polícia Federal deflagrada em junho de 2024 por ordem do ministro Og Fernandes, do Superior Tribunal de Justiça. Na última quarta, 18, a PGR denunciou formalmente o desembargador por corrupção passiva, organização criminosa, advocacia administrativa e lavagem de dinheiro.
O magistrado está afastado das funções. A PGR pede, além da condenação criminal de Ivo de Almeida, que a ele seja imposta a perda definitiva do cargo público – conforme prevê o artigo 92 do Código Penal – além do confisco, em favor da União, de todos os bens, direitos e valores apreendidos relacionados, direta ou indiretamente, à prática do crime de lavagem de dinheiro – nos termos do artigo 7º, I, da Lei n. 9.613/1998.
O filho do desembargador também está entre os acusados.
Cabe ao STJ decidir se abre ou não ação penal contra Ivo de Almeida, seu filho e outros três acusados – Wilson Vital de Menezes Júnior, apontado como intermediário do desembargador na venda de decisões; Luiz Pires Moraes Neto, advogado acusado de comprar decisões para seus clientes; Wellington Pires da Silva, guarda civil e bacharel em Direito, auxiliar do advogado.
Até a publicação deste texto, o Estadão buscou contato com todos os denunciados pela PGR, mas sem sucesso. O espaço está aberto.
A quebra do sigilo fiscal de Ivo Júnior revelou informações constantes em suas declarações de Imposto de Renda Pessoa Física. Seus rendimentos anuais variaram entre R$ 10.181,85 e R$ 31.639,16, entre os anos de 2016 e 2022. No entanto, suas despesas, apenas com uso de cartões de crédito, totalizam aproximadamente R$ 800 mil no mesmo período, ‘excedendo significativamente suas receitas’, que somaram pouco mais de R$ 100 mil.
“Seria impossível a Ivo de Almeida Junior o investimento formalmente a ele associado na sociedade empresária Citron Residence Incorporações SPE Ltda”, afirma a Procuradoria.
Outro ponto abarcado pela denúncia se refere ao fato de Ivo Júnior constar formalmente do quadro societário da Citron. Os atos de administração e de gestão financeira da incorporadora, no entanto, não eram praticados por ele, e sim pelo desembargador.
‘Boletos a pagar’
A investigação demonstrou que o magistrado se utilizava da conta de e-mail ivodealmeida58@bol.com.br para tratar da gestão do empreendimento. Em suas comunicações, foram encontrados boletos a pagar referentes às unidades 13 e 32, além de instruções para a declaração dos imóveis junto à Receita Federal.
Uma pasta denominada ‘Citron’ foi identificada em sua caixa de e-mail, ‘contendo diversas mensagens oriundas da administração do empreendimento, reforçando seu papel de administrador de fato’.
A PF acessou mensagens eletrônicas que ‘evidenciaram que as unidades 13, 32 e 104 do empreendimento Citron eram, na realidade, do desembargador Ivo de Almeida, embora estivessem formalmente registradas em nome de seus filhos’.
Em uma mensagem resgatada pelos investigadores, um sócio cotista da Citron encaminhou informações relativas aos números de contribuintes desses apartamentos, ‘demonstrando o controle do denunciado (desembargador) sobre as finanças do empreendimento’.
Segundo a Procuradoria, as expressivas cifras movimentadas pela pessoa jurídica da qual o desembargador seria o verdadeiro controlador eram compostas, em maioria, por recursos de origem não identificada.
No período compreendido entre os anos de 2016 e 2020, a sociedade empresária recebeu R$ 8,48 milhões sem que houvesse identificação da origem do recurso, o que corresponde ao percentual de 84,91% do total movimentado, destaca a PGR.
“O empreendimento foi utilizado pela associação criminosa como instrumento para ocultar e dissimular a origem de valores ilícitos”, crava a Procuradoria. “Trata-se de fato extremamente relevante, considerando que a pessoa jurídica foi utilizada por Ivo de Almeida para recebimento de vantagem indevida.”
A denúncia destaca transações financeiras de outros dois personagens que seriam ligados ao magistrado para conduzir suposto esquema de venda de sentenças de sua lavra – Valmi Lacerda Sampaio e seu enteado, Wilson Vital de Menezes Júnior.
Valmi, já falecido, teria sido o braço direito do desembargador na ‘prospecção’ de clientes interessados na compra de decisões. Quando ele morreu, o enteado assumiu seu posto na organização, segundo a Operação Churrascada.
A quebra de sigilo bancário descobriu transações financeiras de Valmi e Wilson com a Citron e com sócios da empresa, especialmente Sergio Ribeiro de Souza.
‘Amigo de infância’
‘Em juízo, Sérgio disse que é amigo de infância de Ivo e que a Citron é produto de uma parceria entre eles e outros conhecidos que ‘decidiram edificar um prédio, com divisão do empreendimento em 10 cotas’.
Ele não soube explicar por que o filho de Ivo consta do quadro social. Disse, ainda, que investiu em outro empreendimento, o Piracema, em relação ao qual outro filho do desembargador, Guilherme de Almeida, figura como sócio.
“A existência de transações financeiras entre Valmi, Ivo e as pessoas jurídicas envolvidas em movimentações de dinheiro em espécie e recursos sem lastro reforça que Valmi não praticava mera exploração de prestígio em nome do desembargador”, acusa a Procuradoria. “Era seu verdadeiro intermediário, viabilizando a captação de corruptores.”
Na denúncia de 147 páginas entregue ao Superior Tribunal de Justiça, a Procuradoria dedica um capítulo à lavagem de dinheiro por meio do smurfing via o fracionamento de depósitos de dinheiro em espécie na conta de Ivo Júnior, ‘com o objetivo de ocultar a origem e a movimentação dos recursos e dissimulação da origem por declaração de empréstimo’.
A Procuradoria afirma que o desembargador adotou o padrão smurfing de lavagem de dinheiro oriundo de propinas. Trata-se de uma ‘estruturação financeira’ no âmbito da lavagem de capitais, técnica que consiste na divisão de somas de dinheiro em múltiplas operações de baixo valor, para que o sistema financeiro não comunique as operações globais às autoridades de controle financeiro, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
O objetivo primordial dessa estratégia é obscurecer a origem, a destinação e a movimentação dos recursos, dificultando, assim, o rastreamento de valores ilícitos e a identificação dos responsáveis, assinala a Procuradoria.
O desembargador e o filho violaram, segundo a denúncia, o artigo 1º da Lei 9.613/98 (lavagem de capitais) por 17 vezes, ‘por terem ocultado a origem e a movimentação de recursos financeiros decorrentes de infrações penais, no montante total de R$121.350,00’.
No período de 28 de maio de 2018 a 8 de setembro de 2022, segundo a acusação, o desembargador ‘de modo consciente e voluntário e com unidade de desígnios com Ivo de Almeida Júnior, ocultou a origem e a movimentação de R$ 121.350,00, valor oriundo da prática dos crimes antecedentes de associação criminosa, corrupção ativa e corrupção passiva’.
Segundo a PGR, o magistrado incorreu ao todo em 41 atos de lavagem de dinheiro, 17 dos quais por meio do filho, ‘realizando movimentações exclusivas de dinheiro em espécie, evitando-se a utilização de outras estruturas do sistema financeiro que permitiriam a identificação da origem dos recursos’.
Ivo de Almeida, diz a acusação, promoveu ‘sistematicamente o fracionamento de depósitos, para que as movimentações não fossem notificadas aos órgãos de inteligência financeira’.
Informação de Polícia Judiciária encartada aos autos do inquérito da Operação Churrascada revela que na conta bancária de Ivo Júnior ocorreram transações no montante de R$ 279.274,50 em espécie, no período compreendido entre 28 de maio de 2018 e 8 de setembro de 2022.
Desse total, R$ 170.572,00 foram provenientes de 207 operações a crédito, enquanto R$ 108.702,50 derivaram de 165 operações a débito.
Em termos unitários, nenhuma operação em espécie ultrapassou o valor de R$ 5 mil, ‘medida adotada com o intuito de evitar a comunicação de transações suspeitas por parte das entidades obrigadas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf)’.
Entre 7 de fevereiro de 2020 e 8 de agosto de 2022, a Polícia Federal identificou lançamentos com padrão de depósitos em espécie realizados no mesmo dia dos pagamentos de boletos e, especialmente, faturas de cartão de crédito. “Assim, nos dias de pagamento das faturas do cartão de crédito de Ivo de Almeida Júnior, sua conta era favorecida com a realização de depósitos em espécie fracionados. O controle desses depósitos era mantido por Ivo de Almeida, a verdadeira origem desses recursos não rastreáveis”, afirma a Procuradoria.
A investigação destaca que ‘eventualmente, paralelamente aos depósitos e no mesmo dia, havia transferência complementar feita pela própria conta do desembargador’.
“Constata-se a reiteração da prática de depósitos fracionados, na conta bancária de Ivo de Almeida Júnior, filho do denunciado Ivo de Almeida, realizados predominantemente na mesma data ou em intervalos mínimos entre as movimentações, coincidentes com os vencimentos das faturas de cartão de crédito”, assinala a subprocuradora Luiza Cristina Frischeisen.
O Relatório de Inteligência Financeira n. 75587 indica que Ivo Júnior, no período de 26 de novembro de 2021 a 13 de junho de 2022, realizou ‘movimentações expressivas em espécie de forma fragmentada’, incompatíveis com sua renda declarada de R$ 16.913,88, uma vez que sua conta registrou um montante a crédito de R$ 616.218,71.
As transações registradas no documento representam apenas uma fração da movimentação financeira total da conta, anota a PGR.
A PGR diz que, embora Ivo Júnior se apresente como advogado em registros estatais, não possui matrícula da OAB de São Paulo e nem integra qualquer escritório de advocacia.
“A única empresa vinculada ao seu nome encontra-se baixada, não havendo, até o momento, qualquer justificativa plausível para a movimentação fracionada em espécie identificada, conforme a Informação de Polícia Judiciária n. 66/2022”, acentua a acusação.
Nesse contexto, diz a Procuradoria, no intervalo de 7 de fevereiro de 2020 a 8 de agosto de 2022, foram identificados 17 meses com fracionamento excessivo de depósitos realizados em um mesmo dia, perfazendo-se o montante de R$ 121.350,00, ‘com o objetivo de ocultar a movimentação global, retirando-a do alcance do sistema de fiscalização e prevenção antilavagem’.
Ainda sobre o ‘volume de recursos de origem ilícita movimentados pelo desembargador’, a Procuradoria destaca a expressiva quantidade de empréstimos declarados por Ivo de Almeida a seus próprios filhos – Carlos Mendes de Almeida, Ivo de Almeida Júnior e Guilherme Mendes de Oliveira, bem como a um advogado ‘sem vínculo formal aparente’.
‘Quantias exorbitantes’
Tais empréstimos revelam a existência de quantias exorbitantes, incompatíveis com os seus rendimentos lícitos declarados, segue a denúncia. Os valores totais, que variam de R$ 1,48 milhão a R$ 2,39 milhões, entre 2016 a 2021, ‘evidenciam operações financeiras expressivas, destinadas a ocultar e dissimular a natureza, a origem, a disposição, a movimentação, a localização e a propriedade dos recursos provenientes, direta ou indiretamente, de delitos antecedentes de corrupção ativa e passiva, em contexto de associação criminosa’.
“A concessão desses empréstimos, especialmente a um advogado sem vínculo formal, reforça a tese de que a associação criminosa dispunha de consideráveis montantes provenientes dos crimes antecedentes, os quais se constituíram como objeto dos crimes de lavagem de dinheiro”, sustenta a acusação.
“A esses moldes, Ivo de Almeida e Ivo de Almeida Junior incorreram no art. 1º, da Lei n. 9.613/98, por 17 (dezessete) vezes, na forma do art. 29 do Código Penal, por terem ocultado a origem e a movimentação de recursos financeiros decorrentes de infrações penais, no montante total de R$121.350,00”, afirma Luiza Frischeisen.
COM A PALAVRA, O CRIMINALISTA ÁTILA MACHADO, QUE DEFENDE O DESEMBARGADOR IVO DE ALMEIDA
“A denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal é um rematado absurdo. Restou sobejamente provado que nunca houve venda de sentença ou qualquer tipo de favorecimento por decisão judicial proferida pelo desembargador Ivo de Almeida. Inclusive, temos como prova cabal da inexistência de tais condutas o próprio rol de testemunhas que o Ministério Público Federal indicou: ninguém relacionado aos fatos imputados, apenas policiais federais que conduziram uma investigação absolutamente tendenciosa e que nunca presenciaram, até porque nunca existiram tais fatos.
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) verificou depósitos, em espécie, no montante de R$ 641 mil, refletidos em conta bancária mantida pelo desembargador em conjunto com sua esposa.
Essa movimentação financeira ocorreu no período de fevereiro de 2016 a setembro de 2022, ou seja, ao longo de 79 meses, o que resulta numa movimentação média mensal de R$ 8.113,00, valor absolutamente modesto e proporcional às atividades comerciais desenvolvidas por sua esposa, com a qual é casado há mais de 44 anos e que desde jovem desempenha atividade comercial formal, bem como por dois de seus três filhos.
Tais depósitos em espécie, realizados em regra apenas uma vez ao mês, tinham por objetivo ‘cobrir’ a conta corrente do casal (magistrado e esposa) após o pagamento das faturas mensais dos cartões de crédito do grupo familiar composto por cinco pessoas, a saber: o desembargador, esposa e três filhos, cada qual com seu cartão de crédito, resultando um gasto mensal médio de R$ 1.500,00 para cada cartão de crédito.”