SEM DINHEIRO Torres residenciais em Guangzhou: empresa tem hoje 1.300 obras na China (Crédito:NOEL CELIS)

Desde o ano passado o Ocidente se inquieta com o cerco regulatório promovido pelo Partido Comunista chinês em diversos setores da economia, o que abalou a confiança dos investidores e levou a uma revisão das perspectivas de crescimento do país, atual motor da economia mundial. Esse aperto ganhou um capítulo dramático na última semana, com o risco de colapso de uma gigante do setor imobiliário, capaz de impactar diversos setores e gerar uma crise de confiança no mercado financeiro global. Para se ter uma ideia da escala da ameaça, o perigo foi comparado à quebra do Lehman Brothers, que desencadeou a recessão mundial de 2008. O epicentro da crise é a incorporadora Evergrande, criada nos anos 1990, que está à beira da falência com dívidas de US$ 305 bilhões (R$ 1,6 trilhão).

O risco de que o conglomerado dê um calote é expressivo, o que abalou as bolsas ao redor do mundo. Apesar de ter anunciado na quarta-feira, 22, que chegou a um acordo para pagar 232 milhões de yuanes (R$ 189,5 milhões) a bancos chineses, em uma dívida de curtíssimo prazo, a empresa segue na UTI. Com três milhões de empregados, ela é muito mais que uma empreiteira: tem incorporadora, financeira, montadora de carros elétricos, empresa de alimentos e água mineral e até um time de futebol, o Guangzhou. Era um dos símbolos do “socialismo de Estado” chinês.

Mudança de rumo

“Se a Evergrande quebrará ou não, ainda não dá para saber. Mas certamente não terá o mesmo impacto da quebra do Lehman Brothers”, contemporiza João Leal, economista da Rio Bravo Investimentos. Segundo ele, todo o setor imobiliário chinês está muito endividado e em forte desaceleração. A projeção de crescimento do PIB chinês para 2021, que era de 9%, já foi reduzida para algo entre 6% e 7%. Leal acredita que o governo chinês deverá anunciar algo em breve. Como muitos analistas, ele acredita que o governo vai intervir e não deixará essa quebra potencial virar um risco sistêmico. Mas há dúvidas. Pequim tem deixado claro que não deseja mais sustentar as grandes corporações a qualquer custo e nem proteger os novos bilionários que sempre confiaram no auxílio generoso do PC. Isso afasta a possibilidade de uma estatização. Até o momento, foi frustrada a percepção de que o governo chinês em algum momento injetaria dinheiro no conglomerado e impediria o default. É um jogo novo no gigante asiático, com consequências imprevisíveis.

O drama da Evergrande atraiu a atenção para as dívidas podres das construtoras e imobiliárias chinesas, das quais o mercado não tem uma exata dimensão. O problema é complexo: a Evergrande precisa entregar 1,6 milhão de apartamentos e milhões de pessoas podem ser afetadas se a empresa, já com centenas de obras paralisadas, não terminar as construções. Desde 2020, o Banco Popular da China, o BC chinês, limitou os empréstimos que as instituições podem conceder ao setor — isto atingiu empresas mais agressivas como a Evergrande.

“Quando interessou, o governo chinês incentivou ao máximo a expansão da Evergrande, durante o ‘boom’ imobiliário no país. Agora, o Estado foi omisso e a bolha estourou. Isto terá um efeito sobre o mercado de crédito”, diz o professor de ciências contábeis Murillo Torelli. Entre os credores estrangeiros do grupo estão a BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, o banco suíço UBS e o britânico HSBC.

A turbulência acontece porque o governo chinês quer redirecionar o crescimento do país. Planeja reduzir a participação das incorporadoras, atualmente de 20% no PIB. Este segmento cresceu muito até 2008, quando a China fez a transição demográfica da população rural para a urbana. No final dos anos 90, 75% do orçamento das famílias chinesas era investido em imóveis. A desaceleração já atingiu outros setores e teve repercussões no Brasil, um dos países mais vulneráveis a uma crise global. A tonelada do minério de ferro, que no começo do ano chegou a custar US$ 220, despencou para US$ 108 na última quarta-feira, derrubando as ações dos exportadores, como Vale. É um alerta para a economia brasileira, que mal se beneficiou da alta das commodities no pós-pandemia e agora pode ser arrastada para uma crise global.