A direita chilena tem pronto um projeto de Constituição para substituir a imposta pela ditadura. O novo marco legal endurece o tratamento à migração irregular, restringe o direito à greve e pode impor limites à restritiva lei de aborto.

A iniciativa, que será submetida a plebiscito em 17 de dezembro, foi elaborada por um órgão constituinte dominado pelos ultraconservadores do Partido Republicano, que ganharam terreno com um discurso de linha-dura contra a insegurança crescente, que associam à migração.

Trata-se da segunda tentativa de substituir a Constituição herdada de Augusto Pinochet (1973-1990), que ainda divide os chilenos, apesar de várias reformas terem eliminado seus aspectos mais autoritários.

Uma primeira proposta teve o apoio do governo do presidente de esquerda Gabriel Boric e seus aliados, após a convulsão social que tomou as ruas do país, em 2019, exigindo profundas reformas para reduzir o abismo social.

No entanto, o projeto naufragou nas urnas em setembro de 2022, após o que se seguiu nova eleição de constituintes, na qual venceram o Partido Republicano e outros setores da direita.

Segundo o instituto de pesquisas Cadem, 54% pretendem votar contra o novo plano constitucional no plebiscito de dezembro contra 31% que são favoráveis ao projeto.

Se esta tendência se confirmar, os chilenos – hoje mais preocupados com a inflação, a criminalidade e a corrupção – vão continuar com a Constituição redigida durante a ditadura.

“Há uma espécie de fadiga constitucional. (…) Tem a ver com um déficit de confiança e expectativas no processo”, assegurou o analista Marco Moreno.

– Lei do aborto em perigo? –

No Chile, o aborto é permitido em casos de estupro, inviabilidade do feto e quando a vida da mãe estiver em risco.

O novo projeto, segundo seus críticos, introduz aspectos que abrem o caminho para que a lei de aborto seja revista.

O texto inclui, por exemplo, a “objeção de consciência institucional”, na qual centros de saúde poderiam se apoiar para não realizar abortos.

“Temos um texto que protege a vida de quem está por nascer, reconhecendo que há um alguém dentro do ventre materno, que há um ser humano em gestação”, diz à AFP Beatriz Hevia, republicana de 30 anos, presidente do Conselho Constitucional.

Embora Hevia acredite que este princípio não irá “afetar” a legislação sobre o aborto nos três casos, a esquerda acendeu o alerta.

Os republicanos “declararam a intenção de questionar depois a lei do aborto nos três casos. Há um risco certo de retrocesso nestes temas”, assegura Yerko Ljubetic, constituinte do partido de Boric.

Na América Latina, o aborto é legal em Argentina, Colômbia, Cuba e Uruguai. Recentemente, a Justiça do México descriminalizou o procedimento.

No Brasil, o aborto é considerado crime com penas de até quatro anos de prisão, e é permitido apenas quando há risco para a vida da mãe, má-formação fetal, ou quando a gravidez é resultante de um estupro.

Em setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a votar a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação em plenário virtual, mas a sessão foi suspensa a pedido do ministro Roberto Barroso para que a plenária seja realizada de forma presencial em data ainda a combinar.

– Migração e greve –

Ao abordar o tema da segurança, os ultraconservadores impulsionaram um artigo que determina a expulsão “no menor prazo possível” dos estrangeiros que entrarem no Chile “de forma clandestina ou por passagens não habilitadas”.

Nos últimos anos, chegaram ao país cerca de 1,7 milhão de migrantes, quase todos venezuelanos.

O projeto constitucional proíbe, ainda, o direito à greve para trabalhadores estaduais, municipais, de serviços de utilidade pública ou setores estratégicos.

Além disso, prevê que condenados com doenças terminais cumpram pena em prisão domiciliar, o que favoreceria alguns dos mais de 130 sentenciados por violações dos direitos humanos durante a ditadura.

– Direitos sociais –

O projeto eleva ao nível constitucional o sistema privado de saúde (isapres) e as administradoras de fundos de pensão (AFP), criados durante a ditadura.

Também garante que os chilenos possam optar entre prestadores públicos ou privados.

Centenas de milhares de chilenos exigiram nas ruas pensões mais dignas e serviços de saúde e educação de melhor qualidade e menos excludentes.

Hoje, 16% estão no sistema privado de saúde, enquanto 9% das crianças frequentam escolas privadas sem subvenção estatal.

“A proposta vai um passo além da Constituição de 1980, que abria espaço para debatermos reformas como a que está em discussão (sobre o sistema de aposentadoria) ou saídas alternativas ao desenho das isapres”, afirmou Ljubetic.

A chefe do conselho constituinte defende a “livre escolha”. “O Estado tem que buscar soluções que permitam que todos os chilenos (…) possam escolher”, argumenta Hevia.

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