Acompanhei nesta quarta-feira o ataque ao Capitólio, em Washington, e depois a retomada dos trabalhos do Congresso americano para ratificar a vitória de Joe Biden na eleição presidencial, alternando entre as coberturas da CNN International e da Fox News, o primeiro de pegada liberal, o segundo um canal conservador (embora nas últimas semanas tenha se afastado um pouco de Trump, a quem apoiou durante todo o mandato).

Foi um exercício instrutivo. Pode até ser que o caos de ontem sirva como ponto de virada na política americana, reduzindo a polarização e aumentando o cacife dos moderados. Mas, a julgar pelo trabalho das emissoras, se isso acontecer, não será rapidamente. O espaço de concordância entre as duas foi mínimo. Limitou-se à afirmação de que “a violência é inaceitável”. Fora isso, nada em comum.

A Fox News forçou a mão de duas maneiras. Com base em nada, além da manchete de um tablóide, ela deu espaço para a suspeita de que a baderna foi causada por integrantes do grupo de extrema esquerda Antifa, infiltrados na multidão pró-Trump.

Seus comentaristas, além disso, equipararam a marcha de ontem às recentes passeatas anti-racismo nos Estados Unidos, porque essas, em muitos casos, também acabaram em depredação e pancadaria.

O argumento é capcioso. Os dois movimentos não se igualam na origem. Nada se iguala ao discurso de Donald Trump, que incentivou a marcha sobre o Capitólio com o objetivo de reverter na marra sua derrota eleitoral. Nenhuma outra passeata americana pode ser interpretada como um ataque tão direto ao ordenamento democrático do país. Os jornalistas da Fox minimizaram esse fato.

A CNN também exagerou, ao tratar da hipótese de interrupção do mandato de Trump com base na vigésima quinta emenda da Constituição americana. Depois que deputados e senadores tiveram de ser retirados às pressas do Congresso, escoltados por policiais, alguns de fato discutiram a possibilidade de utilizar esse dispositivo legal, que transfere o poder ao vice quando o presidente se mostrar “incapaz de exercer seus poderes e atribuições” – desde que haja concordância da maioria dos ministros ou a aprovação de uma lei pelo Congresso.

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Ao contrário da Fox, a CNN chamou especialistas para discutir o tema, e eles disseram que o processo para aprovar a medida seria mais longo que os 13 dias de mandato que restam a Trump, além de muito divisivo e politicamente arriscado. Os comentaristas da emissora não pareceram gostar muito dessas avaliações, e continuaram insistindo no tema, quase em tom de campanha.

Não estou querendo ser neutro nessa discussão. Acho que a indignação da CNN é muito mais pertinente que a tentativa da Fox de atenuar a responsabilidade de Trump na barbárie de ontem. É preciso chamar as coisas pelo nome, e Trump atentou contra a democracia.

Meu ponto é que as engrenagens da polarização, que fazem as pessoas perder tempo com fake news (como a da infiltração Antifa) e teses irrealistas (como a da utilização da Emenda 25), vão demorar para ser desligadas. Se forem.

Não será surpresa nenhuma se nos próximos meses os congressistas republicanos que negaram seu apoio a Trump forem retratados como traidores e se tentativas de buscar consenso forem vistas como meros conchavos da “elite política”. Lembremos que Trump se elegeu prometendo “drenar o pântano de Washington” – uma frase que mostrava repúdio a toda a política tradicional, inclusive aos seus rituais virtuosos de negociação.

Nos Estados Unidos, como no Brasil, o espaço para a moderação é estreito. Com perdão pelo paradoxo, é preciso ser radicalmente moderado para defendê-lo.


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