Em Copacabana, protesto contra a esquerda (Crédito:SERGIO MORAES)

As primeiras palavras de Joe Biden como novo presidente funcionaram como um antídoto para o ódio insuflado por Donald Trump ao longo de quatro anos. “É hora de curar a América. Quero ser o presidente que busca unificar, e não dividir”, disse. Foi um alívio em meio ao caos. Nada mais distante do momento atual polarizado, em que os extremos se retroalimentam em um ciclo destrutivo. Num pleito marcado pela tensão, a vitória do democrata representou um repúdio veemente à retórica truculenta de Trump. Assume na condição de grande pacificador. Com isso, já está mudando a política nos EUA, no mundo e no Brasil.

Biden promete fazer um governo baseado na reconciliação e na retomada dos valores fundamentais da sociedade americana, como o respeito à democracia. No cenário internacional, o novo presidente já está na prática isolando os líderes autoritários, que foram turbinados por Trump. Movimentos populistas que investem contra a democracia ficaram órfãos. E Jair Bolsonaro é um dos grandes derrotados no mundo que emerge no pós-trumpismo. “A estratégia de polarização chegou ao limite. As pessoas estão cansadas, inseguras”, afirma o cientista político Carlos Pereira, da FGV-Ebape. Ele acha que as eleições municipais no Brasil, com o resultado pífio dos candidatos apoiados por Bolsonaro, mostra que algo está mudando. Segundo estudo coordenado por Pereira e dois outros cientistas, em fase final, o brasileiro está perdendo sua base de apoio. Para o especialista, Bolsonaro, assim como americano, emergiu na lógica da polarização, que desafia o “status quo”. Lá e cá, os polos exploram riscos. Já havia sinais de desgaste, mas a pandemia foi determinante para enfraquecer essa radicalização. “Grandes mudanças ocorrem em momentos de crise. A doença gerou uma incerteza”, diz. No Brasil, com suas apostas eleitorais naufragando, Bolsonaro ficou ainda mais estridente para manter a base identitária coesa — é o que explica seus recentes arroubos às vésperas do pleito, em busca de dividendos eleitorais. A moderação ajuda a governar, mas não dá votos.

ALÍVIO Manifestantes celebram a vitória de Joe Biden em Nova York. Clima foi de festa após comparecimento recorde nas urnas (Crédito:Kevin lamarque)

Redes sociais

O principal instrumento para manter o clima conflagrado sofreu um duro golpe nas eleições americanas. As redes sociais passaram a marcar as mensagens falsas de Trump sobre a Covid e as suspeitas infundadas de fraude. Grupos que promoviam discurso de ódio ou ameaçavam o processo eleitoral foram cancelados. O combate às fake news não foi um gesto altruísta. O Facebook agiu assim porque está cercado pela Justiça americana, em especial porque ocorreram fortes suspeitas de interferência russa na vitória de Trump há quatro anos. O Twitter também agiu contra a desinformação porque sofreu a pressão econômica de anunciantes que não queriam se associar a ela. Como o presidente governou por meio de tweets nos últimos quatro anos, na prática o seu principal instrumento de manipulação foi neutralizado. A nova forma de mensagem política digital, saudada como revolucionária há poucos anos, é cada vez mais questionada. As redes sociais fomentam as “tribos”, os grupos que compartilham apenas ideias comuns e preconcebidas. Elas não promovem o debate nem permitem o contraditório, o que favorece os extremos. Neste ciclo eleitoral, também foi inédita a atitude das grandes redes de TV, que cortaram o pronunciamento de Trump, feito de dentro da Casa Branca dois dias após o fechamento das urnas, quando apontava fraudes sem nenhum fundamento. Apesar de a iniciativa levantar a questões éticas, ela se contrapôs a um presidente que sempre atacou o papel democrático da imprensa e espalhou inverdades.

NOVA ERA Joe Biden fala à nação no discurso da vitória em Delaware, no sábado, 7 (Crédito:Tasos Katopodis)

No Brasil, outro efeito prático da ascensão de Biden é o enfraquecimento da ala ideológica do governo. As milícias digitais bolsonaristas já abandonam sua grande referência, o escritor Olavo de Carvalho, que também sentiu os efeitos dos novos tempos. Além de ter menos influência no governo, ele perde os alunos de seus cursos e o apoio de companhias que anunciavam em suas redes. Seu destino deve ser semelhante ao de sua inspiração americana: Steve Bannon. Um dos arquitetos do fenômeno Trump, Bannon foi preso e está sendo processado por desvio de fundos. Além disso, foi banido do Twitter ao sugerir a “decapitação” de Anthony Fauci, um dos maiores infectologistas do país, que desagradou Trump ao não aceitar as medidas irresponsáveis contra o distanciamento social e o uso de máscaras. Foi exatamente nessa área que Biden resolveu marcar sua posição, como prioridade número um, e onde deve se diferenciar de Trump. Já criou uma força-tarefa para tratar do combate à pandemia. Integra o time uma brasileira, Luciana Borio, que vive nos EUA desde os anos 1980 e foi cientista-chefe da FDA. Como o novo presidente previu nos debates, os EUA se preparam para um “inverno sombrio” com o aumento no número de infectados.

Trump e fake news

Os EUA já ingressaram em uma nova fase, mas até quando o resultado já é reconhecido por todos, Trump age para impedir a mudança. Quebrando a tradição, não reconheceu a vitória do democrata. Ameaçando o equilíbrio entre os poderes, determinou que o Departamento de Justiça libere investigações sobre as supostas fraudes. É a continuação dos embustes que propagou desde o primeiro dia de governo. Busca deslegitimar o presidente eleito e minar a nova administração. Apesar do alarme de golpe em andamento, a ação não vai interromper nem atrapalhar a transição de poder. Biden tinha conseguido driblar a armadilha da divisão nas primárias do seu próprio partido, mostrou a mesma habilidade contra os republicanos durante a campanha, e agora tem dado declarações garantindo que os preparativos para sua posse em 20 de janeiro seguem imperturbáveis. O objetivo é tirar o combustível de Trump. Este, por sua vez, busca evitar a dispersão de suas tropas.

É exatamente de olho no seu futuro capital político que o mandatário age. “Até mesmo na saída, o trumpismo deixa um país fraturado. Ele se enraizou e vai permanecer”, aposta o cientista político Guilherme Casarões, da FGV-EAESP. Há razões para essa avaliação. O presidente republicano ampliou a votação que recebeu há quatro anos, ainda que tenha sido superado em mais de 5 milhões de votos pelo democrata. Mesmo que a vitória de Biden tenha sido inequívoca, inclusive no Colégio Eleitoral, como as últimas apurações apontam, a polarização ainda está presente. Isso é um sintoma de transformações mais profundas. Para Casarões, a onda Trump se vinculou a outro movimento de fundo na sociedade americana, que ainda desperta pouca análise: o nacionalismo cristão. “Os EUA têm uma população evangélica predominante. O discurso de ser um país para os cristãos é cada vez mais presente. Começou na era Reagan e tem sua maior expressão no grupo Tea Party. O trumpismo é apenas sua versão mais poderosa”, afirma.

BANIDO Arquiteto do fenômeno Trump, Steve Bannon foi preso e processado por desvio de fundos e acabou excluído do Twitter ao propor “decapitação” de autoridade médica (Crédito:Divulgação)

Polarização persistente

Ainda assim, Trump é o grande responsável pela divisão. Nunca quis representar a maioria do país. Apropriou-se do governo para vendettas pessoais. Lutou contra consensos internacionais, como a preservação do meio ambiente e a valorização do multilateralismo. Sob seu governo, os adversários passaram a ser vistos como uma ameaça ao país, não como adversários. Direitos das minorias passaram a ser ignorados. Foi responsável por propagar o ódio misógino, racista e xenófobo. Usou o ressentimento dos eleitores brancos como estratégia política. Ao demonizar o movimento Black Lives Matter, ampliou a intolerância, ao chamar os manifestantes de marginais, criminosos e saqueadores. Assim, é surpreendente que tenha tido uma votação tão grande, e isso deve levar Biden e os democratas a reverem sua estratégia. Os republicanos também têm desafios. Dificilmente acharão outro personagem tão bem-sucedido e midiático. Precisarão se reinventar com uma nova identidade política em um país cada vez mais multicultural. Por enquanto, seus representantes prometem manter a batalha no Congresso. Terão, provavelmente, a maioria no Senado. Com isso, vão dificultar muito o governo Biden, até para a nomeação de ministros. Mas espera-se que o establishment da legenda tome progressivamente o papel de Trump. Com a ascensão democrata, o jogo muda. “A narrativa partidária precisa se reinventar para fazer frente inclusive a Kamala Harris”, diz Casarões.

EM BAIXA Olavo de Carvalho tem cada vez menos espaço no governo Bolsonaro. Perdeu alunos e anunciantes e acumula dívidas (Crédito:Divulgação)

Com Biden, os EUA agora podem voltar a ser uma influência positiva para o mundo. Seu sistema bicentenário não permitiu que um líder demagogo e “movido a intrigas” usasse o voto popular para subverter a democracia, como previu Alexander Hamilton, um dos pais fundadores da nação. O governo Biden já parece ter começado a curar a sociedade americana, como prometeu. Mas as cicatrizes da divisão e o clima conflagrado colocarão à prova a poderosa mensagem pacificadora do novo presidente. A Suprema Corte com uma inédita maioria conservadora de 6 a 3 também será um desafio para os democratas. Mas, depois da catarse da festa e já com o otimismo restaurado para um novo período de progresso, Biden no mínimo vai restabelecer valores como confiança e civilidade e diminuir o ambiente tóxico que seu predecessor deixou como herança.