Daqui a muitos anos, quando quase tudo já tiver sido esquecido, a queda do avião da Chapecoense será lembrada. E não apenas pelo desaparecimento de 71 vidas, mas também pelos admiráveis acontecimentos que se seguiram ao desastre. Se eles não aliviam a dor, ao menos mostram que a humanidade, apesar de tudo e de todos os males que nos afligem cotidianamente, ainda é capaz de gestos sublimes. A tragédia despertou sentimentos adormecidos. Uma corrente de solidariedade varreu o planeta, unindo rivais dos campos de futebol, torcidas adversárias, países distantes, velhos e jovens, atletas de todas as áreas, aficionados ou mesmo gente comum, que nada tem a ver com os esportes. Nos últimos dias, multidões gritaram brados sinceros em homenagem à Chape e a todos os mortos, ou simplesmente permaneceram caladas, em silêncio respeitoso. Ações concretas de ajuda às famílias das vítimas começaram a ser planejadas. Surgiram preocupações genuínas com o futuro do time. Ideias positivas foram lançadas. Não é nada, e não é mesmo, perto das vidas perdidas, mas é a demonstração de que, afinal, ainda há uma dose de altruísmo em cada um de nós.

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COMOÇÃO – Arena Condá: torcedores homenageiam seus heróis eternos

Será impossível esquecer o que os torcedores do Atlético Nacional fizeram na noite de 30 de novembro, no horário previsto para a partida que jamais se realizaria. Talvez tenha sido, e aqui não se está exagerando uma única linha, o momento mais emocionante da história do futebol. Quarenta mil pessoas dentro do estádio Atanásio Girardot, e pelos menos outras 20 mil fora, cantaram o grito de guerra eternizado pelos jogadores da Chapecoense: “Êêêêêêê, vamos, vamos, Chapêêêêêêê, vamos, vamos, Chapêêêêêêê, vamos, vamos, Chapêêêêêêê, êêêêêêê.” A maioria delas vestia branco e carregava velas acesas. Discursos de autoridades colombianas e brasileiras, do técnico do Atlético Nacional e de outros que viveram de perto o desastre lembraram da vulnerabilidade da vida, e o nome de cada um dos mortos foi citado enquanto balões brancos eram lançados ao ar por crianças com o uniforme da Chape. “A queda do avião transformou para sempre a cidade de Medellín, sentimos como se fossem nossos parentes que tivessem partido”, diz o advogado colombiano Alejandro Barrios, que participou ativamente da organização da cerimônia, inclusive preparando discursos. “Queríamos ter feito muitas outras coisas por eles.”

A homenagem revelou-se ainda mais sensível porque, simultaneamente, milhares de torcedores da Chapecoense lotaram a Arena Condá, em Chapecó, também para prestar tributos. Em cidades separadas por 8 mil quilômetros, fãs de futebol se uniram, ao mesmo tempo, por um objetivo comum – reverenciar ídolos que partiram precocemente. Jamais houve algo parecido na história do esporte. Poucas horas depois do acidente, o Atlético Nacional deu outra demonstração de dignidade. O time que faria com a Chapecoense a final da Copa Sul-Americana pediu que o título fosse concedido ao rival, mesmo sem a realização da partida decisiva. A iniciativa comoveu torcedores do mundo inteiro e certamente tornou o Atlético um dos times mais queridos do continente. Há outro aspecto interessante nessa história. Até pouco tempo atrás, o Atlético era conhecido como  a equipe do traficante Pablo Escobar, que financiava a compra de jogadores, o pagamento de salários e, dizem, o suborno a juízes. Com a morte de Escobar, o Atlético optou por limpar o seu nome e a sua história, afastando toda e qualquer conexão com o tráfico. Hoje, é exemplo para times da Colômbia e até do Brasil.

Mundo inóspito

Alejandro Barrios conta que, em Medellín, desconhecidos se abraçaram nas ruas quando a notícia do acidente se espalhou, voluntários foram aos hospitais, moradores ofereceram suas casas para receber o enorme fluxo de jornalistas, amigos e parentes das vítimas. Todos pareciam dispostos a ajudar de alguma maneira. “A onda de solidariedade surpreende porque nos acostumamos a viver em um mundo cada vez mais frio e inóspito do ponto de vista das relações humanas”, afirma ele. “Cada um de nós está absorto demais em seus problemas mundanos, muitas vezes virando as costas para o outro e para as coisas que realmente deveriam importar.” O advogado se emociona e, na entrevista feita por telefone, encerra a frase porque começa a chorar.

Não é preciso muita reflexão para perceber que, de fato, vivemos em um mundo cada vez mais sombrio. Intolerância com imigrantes na Europa e nos Estados Unidos, brutalidade crescente de grupos terroristas, egoísmo exacerbado para onde quer que se olhe. No Brasil, as denúncias de corrupção parecem dizer que não há uma única alma que se salve, a violência urbana ceifa vidas em grandes e pequenas cidades, a fúria nas redes sociais revela o lado cruel de pessoas que, na vida real, pareciam sensatas. Mergulhados em nosso universo particular, esquecemos de cultivar relações, de oferecer ajuda, por mais simples que ela seja, de procurar o amor em vez perseguir o ódio. Foi graças a um acidente terrível, motivado pela irresponsabilidade e ganância de empresários inescrupulosos, que milhões de pessoas se dessem conta da fragilidade da existência, notassem que é impossível controlar o destino, por mais que nos esforcemos para isso, e que perdemos um tempo enorme com insignificâncias.

Como nos atentados terroristas perpetrados pelo Estado Islâmico na Europa, um mundo em choque reagiu com força imediatamente após a notícia da queda da aeronave da Chapecoense na Colômbia. A alemã Angela Merkel e o russo Vladimir Putin divulgaram notas com “sinceras condolências aos brasileiros, aos jogadores e a todas as vítimas da tragédia”. O papa Francisco se disse “profundamente atingido”. No mundo esportivo, o desastre provocou uma catarse coletiva. “A partir de hoje, sou torcedor da Chapecoense”, disse o argentino Diego Maradona que, lembre-se, é um apaixonado pelo Boca Juniors. Maradona se sentiu de tal forma afetado que prometeu ir à Arena Condá para assistir aos jogos da Chapecoense no Campeonato Brasileiro do ano que vem.

 

Os dois maiores craques da atualidade, o português Cristiano Ronaldo e o argentino Lionel Messi, expressaram seu pesar. “Estou chocado, é como se tivesse perdido amigos próximos”, disse Ronaldo. Messi se sentiu pessoalmente atingido por um motivo adicional. Há cerca de um mês, ele e toda a seleção da Argentina viajaram na mesma aeronave (a que caiu na semana passada na Colômbia) para a disputa de duas partidas válidas pelas eliminatórias da Copa de 2018. No voo entre a Argentina e Colômbia, o avião enfrentou forte turbulência e perdeu altitude de forma brusca. Messi e vários de seus colegas de time passaram mal durante o trajeto e chegaram a vomitar. A experiência foi tão traumática que Messi pediu à Associação de Futebol Argentina para contratar outra companhia aérea porque não tinha confiança na LaMia, a empresa dona da aeronave que mais tarde se espatifaria em uma montanha colombiana.

A comoção foi marcante até em nações que têm pouca afinidade com o futebol. Nos Estados Unidos, várias partidas da NBA, a liga profissional de basquete, prestaram singelas homenagens aos jogadores da chapecoense. Antes do início de cada partida, foi realizado um minuto de silêncio. Os telões também exibiram o escudo do time catarinense.

Rei do gatilho

CRAQUE - Além de defender clubes como Internacional, Grêmio e São Paulo, Mário Sérgio também vestiu a camisa da seleção
CRAQUE – Além de defender clubes como Internacional, Grêmio e São Paulo, Mário Sérgio também vestiu a camisa da seleção

Em 1979, Mário Sérgio, um atacante habilidoso e marrento do São Paulo, irritou-se com o barulho que torcedores do São José, time do interior paulista, faziam para atrapalhar a concentração do Tricolor. Ele então foi a à rua, sacou o revólver calibre 38 e deu tiros para o alto. Desde então, o “Vesgo”, apelido que ganhou por olhar para um lado e mandar a bola para outro, ficou conhecido também como o “Rei do Gatilho.” Mário Sérgio, que morreu aos 66 anos no acidente na Colômbia, foi um craque raro, capaz de fazer o “impensável com a bola” (segundo o também craque Falcão). Além de jogar em times como Internacional, Grêmio e Flamengo e colecionar títulos como atleta e técnico, era um polemista irremediável. Comentarista da Fox (era por isso que estava no voo), nunca se esquivou de uma boa briga.

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