No folclore político de Brasília, era famosa entre os analistas a habilidade do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em desarmar crises. Jair Bolsonaro, ao contrário, tem o dom oposto. Os embates políticos cotidianos, muitas vezes gerados pelo próprio presidente, são potencializados e viram conflitos institucionais. A disputa em torno do Orçamento impositivo é exemplar. Surgiu pela omissão e complacência do próprio mandatário e tornou-se um cabo de guerra entre os poderes Executivo e Legislativo, respingando no Supremo Tribunal Federal.

A disputa se refere à ambição do Congresso em controlar um naco de R$ 30,1 bilhões do Orçamento. É quase um quarto do total que o governo terá disponível para gastar em 2020 nas chamadas verbas discricionárias — não obrigatórias. Essa iniciativa foi aprovada em dezembro, por desmazelo do Executivo. Foi uma reação à destinação errática das verbas pelo governo — como o investimento de R$ 7,6 bilhões à estatal Emgrepron, para construção de navios da Marinha, feito no apagar das luzes de 2019. Ainda assim, ela desequilibra a divisão das atribuições entre o Legislativo e o Executivo.

Esse aumento das prerrogativas do Congresso foi indiretamente estimulado pelo próprio presidente, um defensor histórico do aumento do poder dos parlamentares sobre os recursos. A primeira versão do Orçamento impositivo passou em 2015, obrigando o governo a executar as emendas parlamentares individuais. No ano passado, sob apoio inflamado do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), foi aprovada a execução obrigatória também das emendas de bancadas. Os parlamentares acharam pouco e, numa articulação de líderes de partidos, acrescentaram mais R$ 30,1 bilhões ao montante em seu poder, em emendas a serem definidas pelo relator do Orçamento, o deputado Domingos Neto (PSD-CE). Com isso, o parlamentar teria o poder de dizer o destino desses gastos e muitos ministérios dependeriam dele para investir. A expectativa de gerir essa bolada em ano eleitoral levou à criação de um “megablocão” no Congresso, uma expansão do centrão, e a uma disputa entre Câmara e Senado.

Alertado pelo Ministério da Economia, apenas no início deste ano o presidente vetou o trecho que tornava obrigatória a execução de R$ 30,1 bilhões. Os apoiadores do presidente também se omitiram quando o Congresso tentou derrubar esse veto no início do ano. Apenas membros de partidos como Novo, Cidadania e Podemos e o grupo Muda Senado denunciaram e brecaram a iniciativa. Enquanto posava de vítima, o governo manteve o comportamento errático, ora incentivando um acordo intermediário que retivesse parte dos R$ 30,1 bilhões com o Executivo, ora estimulando as milícias virtuais contra a “chantagem do Congresso” — termo cunhado pelo general Augusto Heleno (GSI). Enquanto o ministro Paulo Guedes e o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) negociavam, o general Augusto Heleno detonava o movimento “foda-se”, que embasa as manifestações de 15 de março (leia mais à pág. 32). Isso “tornou mais caro” o arranjo feito com o Congresso, fechado afinal na terça-feira, 3. Por meio dele, Bolsonaro enviou três projetos de lei para restituir R$ 19 bilhões ao relator, mantendo a prerrogativa de contingenciar parte dos recursos. O líder do Podemos no Senado, Alvaro Dias, disse que o acordo era um “drible na opinião pública”. O governo tomou a iniciativa mesmo tendo a quantidade de votos suficiente para manter o veto — garantidos pelos parlamentares independentes, e não da sua base.

Pacto na calada da noite

O presidente negou que tivesse feito acordo. Chamou-o de “entendimento”, um eufemismo para o pacto: um método de negociar feito na calada da noite, enquanto tenta criminalizar o Congresso com ataques nas redes sociais e atiça manifestações contra os outros Poderes. Apregoa que não faz negociações no varejo, mas é o governo que mais liberou emendas parlamentares em primeiro ano de mandato. Tudo é resultado da falta de articulação com o Congresso. No final, a ojeriza pela política se traduz em falta de habilidade para gerir a máquina pública. A saída não é demonizar o Congresso, que tenta ampliar seu papel como reação à inapetência, mas fazer mais política, liderando a agenda de reformas — que são a única saída para
o País voltar a crescer.

O Congresso aprovou o controle maior sobre o Orçamento com a complacência do governo. O movimento foi estimulado pelo próprio presidente