Uma seita virtual de homens misóginos, racistas e homofóbicos que propagam o ódio prolifera há cerca de sete anos na internet, produzindo ameaças, difamação e atentados.

O ponto de reunião desse grupo é o Dogolachan, uma das mais notórias versões brasileiras dos “chans”, fóruns de discussão que muitas vezes se tornam radicalizados e adentram o terreno da ilegalidade, e que ganharam visibilidade após o massacre de Suzano (SP), que deixou oito mortos na semana passada.

A maioria dos chans ficam na superfície da internet e podem ser acessados por qualquer pessoa, mas seus membros são anônimos, e o sistema não guarda rastros de onde eles vieram. O Dogolachan, no entanto, é hospedado na deep web, a parte da internet não indexada pelos motores de busca.

Além da dificuldade técnica de rastrear os usuários, protegidos pelo anonimato, especialistas destacam a falta de vontade política e a escassez de recursos da polícia como obstáculos para investigá-los. Apontam, inclusive, a onda de extrema direita que levou ao poder Jair Bolsonaro, cuja ideologia é compartilhada pelos membros dos chans, como fator impulsionador desses grupos.

Os dois assassinos de Suzano, que se suicidaram, viraram heróis entre os channers, tendo sido enaltecidos como “homens de bem e honrados”.

Suspeita-se que ambos frequentavam o Dogolachan e buscaram ali orientação para planejar o massacre. De acordo com o Ministério Público de São Paulo, uma das linhas de investigação inclui a suposta navegação dos assassinos neste e em outros fóruns.

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Viktor Chagas, professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense, afirma que as discussões no Dogolachan costumam ser “absolutamente cifradas”, inteligíveis apenas para quem possui as referências coletivas do grupo.

“Sem um monitoramento regular, sistemático e preventivo não é possível dar conta das referências desse universo. É preciso que haja uma linha de investigação contínua, que não espere que um massacre como esse ocorra”, aponta.

– “Cura para o feminismo” –

A AFP monitorou o Dogolachan na última semana e constatou reiteradas postagens em que usuários expressam sua intenção de cometer atentados similares ao de Suzano – a prefeituras, colégios, paradas gays, universidades -, na esperança de ganhar destaque “no horário nobre da televisão brasileira”.

Observou-se, ainda, vários novos membros que buscaram o fórum movidos pela repercussão do massacre. “Odeio as pessoas da escola, queria pegar minha faca e matar algumas na sala de aula”, disse um usuário em seu primeiro acesso ao chan, na quarta-feira.

“Com a fama que estamos ganhando, muitos garotos com desejo de massacre começarão a frequentar este recinto, e nós com o devido suporte podemos fazer uma geração inteira de ‘school shooters’ (atiradores em escolas)”, diz outra mensagem.

Os dogoleiros, como são chamados os frequentadores, também trocam dicas de como fabricar bombas, coquetéis molotov e ácido sulfúrico, com o qual pretendem atacar mulheres – “a cura para o feminismo”.

No ano passado, o moderador do Dogolachan André Garcia, codinome Kyo, anunciou no fórum que ia se suicidar. Estimulado por outros membros, resolveu levar consigo a “escória” – como se referem a minorias – e matou com um tiro uma mulher em uma rua de Penápolis, interior de SP, antes de tirar a própria vida.

Ele virou mito nos chans brasileiros, como já havia acontecido com Wellington Menezes, que em 2011 matou 12 pessoas na escola onde havia estudado, em Realengo, no Rio de Janeiro.

Embora o anonimato dificulte a investigação, nenhuma ação na internet é absolutamente irrastreável, coincidem especialistas.


Para Marcelo da Luz, doutorando em Sociologia na Unicamp e especialista em cibercrimes, o maior problema é que as polícias civis, incluindo as delegacias especializadas em crimes eletrônicos, contam com baixos recursos humanos e materiais.

“As polícias estão sobrecarregadas, respondendo a demandas cada vez maiores, e não têm recebido a devida atenção política e de investimentos para melhorarem e se aprofundarem em investigações mais prolongadas nestes fóruns”, aponta.

Questionada pela AFP sobre o combate aos crimes de ódio na web, a delegacia especializada em delitos de intolerância de São Paulo (Decradi) afirmou que não concede entrevistas para não atrapalhar investigações.

– “Milícias virtuais” –

Embora atentados sejam a face mais extrema desses fóruns, um de seus motores é a perseguição a ativistas, como o ex-deputado federal Jean Wyllys (Psol), que decidiu deixar o país após ser vítima de difamação e ameaças, muitas delas vindas de dogoleiros.

A blogueira feminista Lola Aronovich, que afirma receber “milhares de ameaças de morte” de channers há 10 anos, é um dos principais alvos.

Este fórum “tem muitos neonazistas, com discursos contra negros, judeus e imigrantes, mas o principal combustível deles é a misoginia. São homens solitários, revoltados com o mundo, vivem em uma realidade alternativa em que acreditam que a verdadeira vítima hoje é o homem hétero e branco”, diz Lola à AFP.

A blogueira foi vítima de campanhas de difamação e chegou a ser processada quando Marcelo Mello, de 33 anos, um dos fundadores do Dogolachan, criou um site de propagação de ódio em seu nome, em que pregava infanticídio e aborto, e a denunciou ao Ministério Público.

Lola critica a lentidão da polícia, à qual solicitou por anos que investigasse as ameaças contra ela e sua família.

No ano passado, suas denúncias ajudaram a Polícia Federal a capturar Mello na Operação Bravata. Ele foi condenado a 41 anos de prisão por associação criminosa, divulgação de pedofilia, racismo e terrorismo.

Nesse mesmo ano, a ONG Safernet recebeu 128 mil denúncias de crimes de ódio na web e o Ministério Público Federal registrou um aumento de 29% nas ações relacionadas a esse tipo de delito.

“O processo eleitoral, ano passado, foi muito polarizado e explica esse aumento”, afirmou a procuradora Neide Cardoso em fevereiro.


Para Lola, o principal impulsor da violência gerada nos chans hoje é o “empoderamento” dos channers com a eleição de Bolsonaro – a quem ela acusa de ser “parceiro das milícias virtuais” do submundo da internet – e sua promessa de liberar o porte de armas.


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