As mortes provocadas pela miséria na América Latina são secretas. A cada ano explodem, silenciosamente, três bombas de Hiroshima sobre esses povos que tem o costume de sofrer com os dentes apertados. As palavras usadas pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano na obra “As veias abertas da América Latina”, em 1971, se referiam à pobreza e à desigualdade invisíveis ao mundo em uma região explorada pelas nações desenvolvidas. Hoje, porém, elas ainda ecoam não apenas do ponto de vista social, como também sobre a conjuntura política. No momento em que a reportagem foi escrita, a cidade de Caracas, na Venezuela, vivia o sétimo dia de intensos protestos após o fechamento da Assembleia Nacional, determinado pela Suprema Corte na quinta-feira 30. No Paraguai, manifestantes incendiaram o Congresso na segunda-feira 3, no centro de Assunção após a aprovação de uma emenda que possibilita a reeleição do atual presidente Horário Cartes. No Equador, a recente vitória de Lenín Moreno foi considerada fraude por seu opositor Guillermo Lasso e incitou confrontos entre partidários de ambos os candidatos. Essas são bombas diárias que provocam uma verdadeira convulsão social. “Estamos buscando uma nova identidade política, as que existiam até hoje já não dão conta de atender aos anseios sociais”, afirmou à ISTOÉ Hugo Alberto Duarte Fernandes, diretor da Escola de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional de Assunção, no Paraguai.

CALAMIDADE No Equador, Rafael Correa (à dir.) cumprimenta Lenín Moreno
CALAMIDADE No Equador, Rafael Correa (à dir.) cumprimenta Lenín Moreno

A Venezuela vive hoje o momento mais dramático de uma crise que se arrasta há anos. O Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), composto por juízes favoráveis ao governo de Nicolás Maduro, destituiu a Assembleia Nacional, de maioria oposicionista. Mesmo após ter revertido a decisão no sábado 1, o Tribunal violou a ordem democrática no país. A guerra entre poderes instaurou uma atmosfera de tensão entre políticos e a população venezuelana, que saiu às ruas para se manifestar contra e a favor do governo chavista. “Há muitos protestos sendo reprimidos”, diz à ISTOÉ Joe Codallo, analista político da Universidade Central da Venezuela e membro da ODH Consultoria. “Os deputados da oposição pedem que os membros do Tribunal de Justiça sejam destituídos e que novas eleições, inclusive para presidente, sejam convocadas.”

Confrontos sociais

O problema chegou ao Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA), que decidiu aplicar a chamada “carta democrática” para garantir a plena restauração da ordem no país. Um das mais graves consequências da instabilidade política é o enfraquecimento da economia. A população sofre com a ausência de produtos e serviços básicos. “Não se pode comprar pão porque a farinha de trigo é importada e não chega ao país”, diz Codallo. O ambiente de incertezas afasta empresários e torna escassa a produtividade de setores importantes. “As importações diminuíram e a produção industrial sofreu o impacto”, afirma o especialista. Nos últimos 2 anos, a crise econômica fez cerca de 30 mil venezuelanos migrarem para o estado de Roraima, no norte do País, em busca de trabalho e melhores condições de vida.

No Paraguai, a temperatura também se elevou. As chamas que saíram das portas e janelas do Congresso, em Assunção, deram o tom da revolta da população com a aprovação de uma emenda que permite a reeleição de Horácio Cartes, do Partido Colorado, em 2018. A medida, aprovada por 25 dos 45 senadores, foi tomada em uma votação surpresa de portas fechadas, já que a Constituinte paraguaia de 1992 proíbe que um presidente e seus familiares se reelejam. Somente durante o governo militar de Alfredo Stroessner a reeleição indefinida era admitida. Não à toa, manifestantes erguiam faixas com os dizeres “ditadura nunca mais.” “Desde o início do processo de transição democrática não houve um presidente que não tenha tentado modificar a Constituição para se manter no poder”, diz Fernandes. Caso a reeleição seja aceita, o ex-presidente Fernando Lugo, destituído em 2012 em um rápido processo de impeachment, também poderia concorrer ao pleito de 2018. Cartes, que conseguiu melhorar os índices macroeconômicos, não agrada as classes de menor poder aquisitivo. Por isso, a tentativa de alterar a Constituição caiu tão mal. “A juventude toma conta dos processos de mobilização e critica o modelo que privilegia os grandes setores”, diz Fernandes.

PROTESTOS Em Assunção, no Paraguai, jovens incendeiam o Congresso em protesto contra emenda que permite a reeleição
PROTESTOS Em Assunção, no Paraguai, jovens incendeiam o Congresso em protesto contra emenda que permite a reeleição

A solução para evitar conflitos como os que ocorreram na semana passada seria convocar um referendo popular. “Hoje, vivemos em um regime gerido por pessoas que não acreditam na democracia”, diz. “É uma batalha diária superar a herança de privilégios que existia nos tempos da ditadura”. No Equador, a disputada eleição entre o candidato do partido de Esquerda Alianza País, Lenín Moreno, e o adversário de centro-direita, Guillermo Lasso, do Creando Oportunidades (Creo), também gerou confrontos nas ruas da capital Quito. Diante da vitória do rival, Lasso denunciou à OEA tentativa de fraude na disputa, sob o argumento de que as cédulas teriam sido manipuladas a favor de Moreno. A vitória do herdeiro político de Rafael Correa ocorre no mesmo momento em que há um avanço das forças de centro-direita na América Latina. “O desafio será evitar que a crise política e econômica se aprofunde”, afirma Esteban Nicholls, cientista político da Universidade Andina do Equador. A fragilidade democrática na América do Sul é uma herança dos longos e sangrentos períodos de ditadura militar, que deixaram profundas sequelas na região. A desigualdade social, uma das mais abissais do mundo, é outro entrave que freia o desenvolvimento. “Na América do Sul, há uma estrutura social baseada na concentração da riqueza nas mãos de uma parcela muito pequena e isso gera sistemas instáveis”, diz Igor Fuser, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC.

Em ebulição
Os fatores que levaram à maior crise política no continente desde os anos 70

Paraguai
O estopim para a crise foi a emenda constitucional que autoriza a reeleição do presidente Horácio Cartes. Opositores afirmam que a medida fragiliza as instituições

Equador
Lenín Moreno, do partido governista Aliança País, venceu o pleito na terça-feira 4. O rival Guilhermo Lasso denunciou à OEA tentativa de fraude na disputa

Argentina
O governo de Mauricio Macri enfrentou na semana passada
a primeira greve convocada pelos dois maiores sindicatos do país

Venezuela
O Tribunal de Justiça do país decidiu destituir a Assembleia Nacional, desrespeitando a divisão entre poderes