As primeiras linhas foram escritas em 1962 – era para ser um conto, depois uma novela, até se transformar no romance Fogo, Cerrado! (Geração Editorial), recentemente lançado pelo escritor e jornalista Marcos Wilson Spyer Rezende. “A essência, todos os personagens, trama, cenário estavam no texto original de 62”, conta o autor, que trabalhou no Estadão. “Na época, sabia de cor e, nos primeiros anos, fui fazendo correções na cabeça, burilando frases, acrescentando detalhes de cada personagem, enriquecendo o ambiente. Enfim, a novela inicial nunca parou de ganhar corpo ao longo de quase seis décadas.”

O cerrado, na verdade, se impõe como o grande cenário da história, influenciando as atitudes e os pensamentos dos personagens. A trama se passa no início da década de 1960, quando da construção da estrada ligando o Rio de Janeiro à nova capital, Brasília. Além do choque provocado pela chegada nem sempre positiva do progresso a uma região praticamente intocada, há ecos ainda da fervura política, que logo resultaria no golpe militar de 1964.

Uma construtora instala seu canteiro de obras em uma fazenda às margens da rodovia para onde leva centenas de trabalhadores do Nordeste. Quando a obra chega ao fim, no entanto, eles decidem permanecer naquela terra fértil às margens do Rio Santo Antônio, o que desperta a ira de proprietários rurais.

Instala-se, assim, o conflito entre personagens tão díspares e ricos, como um fazendeiro que, coronel maçom, é obcecado por matar comunistas que, acredita, querem tomar suas terras. Destacam-se ainda homens e mulheres da elite a caminho da nova capital do País.

Outros personagens (como o filho de um jagunço, garoto de 12 anos que aguarda um novo apocalipse com a chegada de uma onda de frio) revelam a admiração que Rezende devota ao grande escritor mexicano Juan Rulfo (1917-1986), cujo único romance, Pedro Páramo (1955), é considerado um dos mais influentes da literatura latino-americana.

“Os personagens são assim – não é preciso criar. Um repórter quando vê e descreve uma pessoa não precisa inventar. Deve apenas entrar no espírito das pessoas, onde até a aparência é reveladora. O repórter e escritor americano Gay Talese fez isso”, comenta ele.

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Se Rulfo construiu uma narrativa em que primeira e terceira pessoas se misturam, com uma alternância de personagens sendo descritos por uma infinidade de fragmentos e uma sequência que não segue a ordem temporal, Rezende adota a linguagem telegráfica: frases curtas, enxutas, muitas vezes formadas por apenas uma palavra.

“A linguagem flui normalmente”, explica. “É como se a forma se transformasse em conteúdo. Você incorpora esse jeito de escrever, que passa a dirigir sua escrita como uma série infindável de memes. Parece um pouco com a criação de um quadro, onde o pintor tem o desenho original e a grandiosidade vem em cada pequeno detalhe do traço.”

Repórter de ouvido atento e olhar arguto, Rezende registra com precisão os sons e as imagens que descobriu no cerrado brasileiro. “Só conto o que vi de uma maneira diferente: frases curtíssimas, as falas entram no texto sem pedir licença, cada personagem narra sua própria história. Há uma certa ordem no mais completo caos.”

Assim, o realismo fantástico de Rulfo é filtrado pelo autor brasileiro, resultando em uma narrativa que se aproxima do naturalismo ou, como bem gosta de frisar o próprio Rezende, do evolucionismo de Charles Darwin (1809-1882), do pensamento do biólogo evolutivo e escritor britânico Richard Dawkins e do filósofo norte-americano Daniel Dennett.

Nesse sentido, a natureza ganha especial importância, moldando a postura e a atitude dos personagens. “Os animais (incluindo o animal homem) são iguais, não semelhantes, em sua essência no livro”, observa Rezende. “A natureza é viva/vive: o cerrado, os animais, as gentes.”

E o livro traz ainda outro ponto positivo: as ilustrações em traço fino e elegante de Bruno Liberati, artista que morreu em junho do ano passado, aos 71 anos. Seus desenhos reforçam o caráter dramático do texto, o que torna ainda mais verdadeira uma frase de Rezende: o cerrado não se conhece – o cerrado se vive. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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