30/10/2024 - 13:10
De um terreno carbonizado pelas chamas, brota o verde quase fosforescente de várias plantas no Parque Nacional de Brasília, uma prova da resiliência do Cerrado diante dos incêndios, embora cada vez mais colocado à prova.
Nesta reserva, os solos pretos e troncos chamuscados são os registros do fogo que, em setembro, queimou 1.470 hectares desse refúgio de água e fauna ao lado da capital do país, em meio a uma seca provocada por um recorde de 169 dias sem chuva.
Não foi um caso isolado. Com mais de 240 mil focos, 2024 já é o pior ano de incêndios no Brasil em mais de uma década, um fenômeno que os especialistas associam às mudanças climáticas.
Mas o Cerrado, a savana com maior biodiversidade do mundo, ao sudeste da Amazônia, possui há milhões de anos métodos para resistir às chamas e às altas temperaturas.
“O Cerrado é uma floresta de cabeça para baixo. O que nós vemos é muito pouco do Cerrado, a floresta está toda embaixo dos nossos pés”, afirma Keiko Pellizzaro, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pelos parques nacionais brasileiros.
Abaixo, um sistema de raízes profundas pode “bombear” água subterrânea “mesmo no extremo de seca”, explica ela.
Enquanto isso, na superfície, as cascas grossas das árvores e os frutos lenhosos funcionam como “isolantes térmicos”, segundo Isabel Schmidt, professora de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB).
Mesmo diante de temperaturas de até 800 ºC provocadas pelas chamas, a vegetação sobrevive “como se fosse um dia quente”, acrescenta.
Um mês após os incêndios, e com as primeiras chuvas, gramíneas e pequenas plantas surgem ao lado de troncos mortos, e árvores com troncos chamuscados renascem com novas folhas nesta reserva de mais de 40 mil hectares.
“Mesmo que nós não tivéssemos chuva, a gente veria alguma resiliência, alguma regeneração do Cerrado acontecendo”, observa Pellizzaro, bióloga e ecóloga.
“Eu me admirei com a capacidade de regeneração”, diz Priscila Erthal Risi, uma voluntária de 48 anos que participa do plantio de plantas nativas, uma iniciativa do ICMBio para contribuir com a recuperação do Parque Nacional.
“A gente acaba encontrando espécies que estão lutando para se restaurarem e outros tipos de plantas que vão precisar de um suporte, de um apoio, de um manejo, de uma semeadura”, afirma esta professora de paisagismo, que espalha sementes de gramíneas como capim-rabo-de-burro e capim-rabo-de-raposa e de árvores como o tingui.
A Polícia Federal investiga o incêndio no Parque Nacional de Brasília. Como a imensa maioria dos focos no país, as suspeitas indicam que os incêndios têm origem criminosa, especialmente para abrir espaço para pastagem de gado ou agricultura.
Schmidt afirma que a vegetação do Cerrado sempre conviveu com os incêndios esporádicos causados por raios, nas estações chuvosas.
Mas se a seca extrema se tornar mais recorrente, como nos últimos tempos, isso pode desafiar os limites do bioma.
“A resistência que as plantas têm, que os bichos também têm, a qualquer tipo de fogo, foi adquirida ao longo de milhões de anos, e as mudanças climáticas estão acontecendo ao longo de décadas, então não tem como nenhum organismo vivo se adaptar a essas mudanças de forma tão rápida”, aponta Schmidt.
Menos conhecido que a Amazônia e o Pantanal, seus biomas vizinhos mais famosos, o Cerrado é chamado de “berço das águas”, porque abriga as nascentes de importantes rios e aquíferos que banham a América Latina.
Mas essa condição está em risco: cientistas destacam que o início da estação chuvosa está atrasando em mais de 30 dias e, nas últimas três décadas, a pluviosidade caiu 8%, em média. Como resultado, o fluxo dos rios diminuiu 15%.
Se as chamas se tornarem frequentes, “muitos ecossistemas que são mais sensíveis ao fogo”, incluindo os do Cerrado, “podem simplesmente não retornar”, alertou Schmidt.
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