Em um de seus ensaios, o filósofo francês Michel de Montaigne dizia que meditar sobre a morte era refletir sobre a liberdade. Numa manhã ensolarada de 2005, Domingo Alzugaray, pela primeira vez, avocou para si a libertária tarefa de projetar o apagar da chama – aquele momento inescapável de nossa existência. Convocou o filho Caco Alzugaray para uma conversa particular e, em tom sóbrio, o surpreendeu: “Carlos, se eu morrer um dia, quero ser cremado e minhas cinzas jogadas no Rio Tietê, pois, dessa forma, estarei realizando o caminho contrário de minha chegada ao Brasil”. Tempos depois, o fundador da Editora Três materializou seus pensamentos num bilhete entregue à secretária particular, Eni, a quem sempre teve em mais alta conta. No manuscrito, ele explicava como o arremesso de suas cinzas no Tietê faria com que seu corpo percorresse a última jornada de volta à sua terra natal: “suas águas atravessam o Brasil, desembocam no Rio Paraná, passam pela província argentina de Entre Rios (onde fica localizada Victória, cidade em que Domingo nasceu) e deságuam no Rio da Prata, em Buenos Aires”. Seus desígnios começaram a ser cumpridos no cemitério Horto da Paz, em Itapecerica da Serra, na terça-feira 25. Numa cerimônia marcada pela emoção, cerca de 200 pessoas, entre amigos, políticos e empresários prestaram sua solidariedade aos familiares de Domingo Alzugaray.

AMIGOS PARA SEMPRE Companheiros de trabalho,amigos e autoridades prestaram a última homenagem a Domingo Alzugaray (Crédito:João Castellano)

“Inovação, pioneirismo, coragem e alegria de encarar a vida” foram as palavras mais repetidas na última homenagem ao empresário. Durante o velório, os choros de lamentação se misturaram a saudosas recordações. O indisfarçável carinho nutrido por Domingo estava estampado no rosto das pessoas. As expressões traduziam sentimentos nostálgicos – estes, desprovidos de melancolia. Na sala onde o corpo do editor e diretor responsável pela Três estava sendo velado era facilmente perceptível: ninguém estava ali por uma obrigação litúrgica. A grande maioria levava na mente e no coração uma afetuosa lembrança. Nas rodas de conversas, todos, sem exceção, traziam histórias capazes de enternecer qualquer interlocutor que, por falta de oportunidade e sorte, não tivesse conhecido Domingo de perto. Companheiro de longa data, Johnny Saad, presidente do Grupo Bandeirantes de Comunicação, relembrou um episódio que, para ele, define o estado de espírito de Domingo Alzugaray, caracterizado pelo incorrigível bom humor – em geral dotado de uma ironia fina, perspicaz e inteligente. “Certa vez, estávamos todos em um restaurante lotado em São Paulo e José Sarney havia deixado a presidência da República. O Domingo guardou certa distância do ex-presidente e começou a falar em voz alta, em tom de cobrança, ao político: ‘O senhor havia me prometido uma emissora de televisão e não cumpriu com sua promessa’. Os comensais pararam para ouvir a conversa. Sarney ficou sem graça, quis terceirizar a culpa. Domingo insistia: ‘Não, o senhor prometeu para mim, pessoalmente, mas não honrou com sua palavra’. Após atrair todas as atenções, sapecou: ‘E é justamente por isso que eu te agradeço todos os dias de minha vida, pois se eu tivesse tido um canal de televisão teria sido um desastre’. E todos caíram na gargalhada. Esse era o meu amigo…”, concluiu Saad.

Entre as autoridades presentes estavam o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o senador José Serra. “Lembro de um evento em 2008, quando fui homenageado. Ele disse para mim ‘o senhor não está sendo homenageado pela sua integridade e sim pelo que é´. Esse era o Domingo. Ele dizia o que tinha que dizer com coragem e grandeza”, recordou Meirelles. Serra preferiu destacar o pioneirismo que sempre acompanhou o empresário em toda sua trajetória. “Um bom comandante, um espírito inovador, de correr riscos”, afirmou. Acompanhado de assessores, Alckmin lamentou a perda para o jornalismo brasileiro “de um de seus grandes nomes”. “Ele foi um empreendedor das comunicações, que acreditava na liberdade de expressão e no jornalismo independente como pilares da democracia”, disse o governador tucano. Grandes empresários do País também marcaram presença na solenidade do adeus a Domingo Alzugaray.

“A imprensa e a democracia perdem um de seus baluartes.” Michel Temer, presidente da República (Crédito:André Coelho)

Entre os quais, o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, o diretor-executivo da Amil, Norberto Birman e o presidente da Gol, Paulo Kakinoff. “O Brasil perdeu, o jornalismo perdeu, o setor empresarial perdeu. Domingo sempre se mostrou um apaixonado pelo Brasil, país que adotou”, destacou Trabuco. Visivelmente consternado, Birman lamentou a morte do criador do Grupo de Comunicação Três. Enalteceu o fato, no entanto, de que a vocação empreendedora de Domingo foi transmitida a seu filho Caco, presidente executivo e publisher da editora. O presidente da Gol, Paulo Kakinoff, lembrou ter conhecido o criador da ISTOÉ durante os almoços promovidos na Três, quando ainda era diretor da Volkswagen. “Desde então, passei a nutrir uma admiração grande por ele e por sua família, da qual sou amigo até hoje. É uma perda inestimável”, afirmou. Lisonjeou a família Alzugaray o comparecimento do reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente. Ele sempre cultivou um carinho especial por Domingo, defensor intransigente do respeito à diversidade. “Ele foi uma pessoa fantástica, que soube congregar o sentido de mudança e de um salto adiante”, disse.

“Ele foi um empresário no sentido pleno: era inovador e persistente” Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente (Crédito:Pedro Dias / AG. IstoÉ)

Um dos pontos altos da cerimônia, aquele em que, como dizia o poeta, a emoção transborda da alma, foi o pronunciamento do dileto amigo Roberto Muylaert, ex-presidente da ANER, a Associação Nacional de Editores de Revistas. Durante o discurso de despedida proferido defronte ao corpo de Domingo, o jornalista rememorou grandes momentos – hoje já história – desfrutados ao lado do empresário. Com os olhos encharcados, lembrou de como era o sentimento nutrido pelo dono da Editora Três em relação aos seus subordinados. “Ele dizia que funcionários que trabalhavam vendendo produtos da editora de casa em casa levavam muitas portas na cara e, portanto, ao voltarem para o escritório deveriam ser tratados como reis”. Os sobressaltos do mercado editorial, sublinhou Muylaert, nunca foram capazes de abalar o dono da editora Três. “Mesmo com os altos e baixos, Domingo não perdia a esperança, nem baixava a crista”, afirmou. Após fala de Muylaert, foram entoadas duas das canções prediletas de Domingo que marcaram a dupla nacionalidade cravejada em seu coração: “Manhã de Carnaval”, de Agostinho dos Santos, e “Adiós Muchachos”, na inconfundível voz de Carlos Gardel. Neste momento, ficou difícil para o salão lotado – especialmente para a viúva e também editora dona Catia, os filhos Caco e Paula (jornalista e crítica especialista em artes) e os netos Martina e Dries – conter as lágrimas. O último tango soou como uma oração, expressando a irreverência que lhe era característica.

“O Brasil perdeu um grande homem. Ele dedicou parte de sua vida à imprensa brasileira” José Sarney, ex-presidente (Crédito:Adriano Machado / AG IstoÉ)

Reverenciado

Desde a segunda-feira 24, as manifestações por ocasião do falecimento de Domingo Alzugaray foram a expressão do pluralismo e da independência que pautaram as publicações dirigidas pelo editor e diretor responsável pela Editora Três. O primeiro a prestar condolências foi o presidente da República, Michel Temer. Em nota, ele afirmou que, com a morte do fundador da Três, a imprensa e a democracia perderam um de seus baluartes. “Sua atuação foi marcante. Em todos os setores em que atuou, sempre ocupou posição de liderança”, disse o presidente. Mesmo na Europa, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) divulgou uma mensagem de solidariedade tão logo recebeu a notícia da partida de Domingo Alzugaray. Nela, ressaltou um traço da personalidade do editor e diretor responsável da Três. “Ele foi um empresário no sentido pleno: era inovador e persistente. A indústria jornalística sentia nele a audácia e a criatividade de um capitão de empresa”, afirmou FHC. O também ex-presidente José Sarney (PMDB-AP) lembrou com carinho da figura de Domingo. “O Brasil perdeu um grande homem que dedicou parte de sua vida à imprensa brasileira e foi um renovador”.

Conectado sempre com os anseios de uma sociedade exigente, sensível e plural, Domingo Alzugaray modernizou e transformou a linha editorial dos veículos de comunicação do País. Estes predicados também foram ressaltados nas derradeiras reverências a ele. Para o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o País perdeu “um grande empreendedor da área de comunicação”. Já o presidente do Senado, Eunício de Oliveira (PMDB-CE), afirmou que o fundador de ISTOÉ foi “um homem íntegro e corajoso e deixa um legado de independência e combatividade”. O ministro Gilmar Mendes, do STF e

“A morte do Domingo é uma perda imensa para o jornalismo e para o mundo empresarial” Johnny Saad, presidente do grupo Bandeirantes de comunicação (Crédito:Gabriela Bil/Futura Press)

presidente do TSE, enfatizou o pioneirismo de Domingo Alzugaray. Para ele, o fundador de ISTOÉ “teve papel fundamental na modernização dos veículos de comunicação do País, prezando pela liberdade de imprensa e pela democracia”. O prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB-SP), em viagem oficial à China, ressaltou a importância do criador da Editora Três para o jornalismo. Segundo Doria, o fundador de ISTOÉ “escreveu parte da história da imprensa brasileira e foi um guerreiro”. O prefeito de Salvador, Antonio Carlos Magalhães Neto (DEM-BA), lembrou que Domingo Alzugaray foi “um dos grandes responsáveis pelas transformações que aconteceram no jornalismo brasileiro nos últimos 50 anos”. Perfilado como poucos nas páginas de ISTOÉ, o vereador e ex-senador Eduardo Suplicy (PT-SP) destacou a versatilidade do “inventor de revistas”. “Foi ator, diretor, produtor de peças de teatros e filmes, até se envolver com o jornalismo, área em que foi muito bem-sucedido”. O empresário Abílio Diniz teceu loas ao espírito crítico do dono da Três. “Além de um espírito empreendedor nato”. Para o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), Paulo Skaf, o Brasil se ressentirá da ausência de Domingo. “Ele teve importante papel na história do País. Fará falta”.

A despedida e a pétala

“Teve papel fundamental na modernização da comunicação do País, prezando a liberdade de imprensa e a democracia” Gilmar Mendes, ministro do STF (Crédito:Marcos Oliveira)

Em “Cerimônia do adeus”, livro homônimo ao título desta matéria, a escritora e teórica social Simone de Beauvoir abre o prefácio com as seguintes palavras em homenagem ao companheiro Jean-Paul Sartre: “eis aqui meu primeiro livro – o único certamente – que você não leu antes que o imprimissem, embora todo dedicado a você”. Pois eis aqui a primeira ISTOÉ, a única certamente, que Domingo não leu, embora dedicada a ele. Mesmo assim, o etéreo não deixou de visitar um dos momentos marcantes da despedida do fundador da Editora Três. Ao término do pronunciamento do locutor, do ramalhete de lírios brancos, a compor a coroa de flores pertencente à família Alzugaray, deslizou suavemente uma pétala até amortecer íntegra no chão. Para os familiares, a cena constituiu o mais singelo e sublime sinal do último adeus. (Colaboraram André Cardozo, Eduardo Militão, Eliane Lobato e Bárbara Libório)