IMPRUDÊNCIA A dona de casa Rosa Saroa utiliza uma prótese de retina e não consegue mais cuidar dos netos e da casa
IMPRUDÊNCIA A dona de casa Rosa Saroa utiliza uma prótese de retina e não consegue mais cuidar dos netos e da casa (Crédito:Andre Lessa/Ag. IstoÉ)

Durante uma consulta ao oftalmologista, em novembro do ano passado, o aposentado Anisio Augusto de Oliveira, de 69 anos, recebeu a recomendação para aumentar o grau dos óculos e de fazer a cirurgia para eliminar a catarata, doença que atinge o cristalino e deixa a visão nublada. Ficou animado. Com a operação, considerada corriqueira, teria mais facilidade para enxergar e exercitar seu passatempo predileto: consertar eletrônicos. Foi tudo muito simples. Oliveira preencheu os documentos para participar do mutirão do Hospital das Clínicas de São Bernardo, cidade da Grande São Paulo onde vive, e a intervenção durou cerca de 10 minutos. No dia seguinte, o aposentado acordou com uma ardência forte nos olhos e decidiu ir com a esposa ao pronto socorro. Lá, reencontrou todos os pacientes que haviam participado do mutirão com ele, relatando problemas parecidos. Recebeu a recomendação de tomar cinco comprimidos antibióticos e voltar no dia seguinte. Apesar de ninguém ter lhe dito nada, percebeu que algo de muito errado havia acontecido. “Soube naquele momento que tinha perdido a visão”, afirma.

Oliveira e outros 21 idosos que participaram do mutirão naquele dia 30 de janeiro de 2016 tiveram uma endolftalmite, inflamação causada por uma bactéria. Dos 27 pacientes operados, 22 foram contaminados pela infecção e um morreu. Internado por 15 dias, o aposentado teve de retirar o globo ocular esquerdo e colocar uma prótese, paga pela prefeitura, para que a bactéria Pseudomonas aeruginosa não causasse complicações em seu cérebro. “Hoje, enxergo só 30% com o olho direito”, diz ele, que adotou um semblante fechado e passa os dias em silêncio, sem poder manusear suas engenhocas eletrônicas. Os culpados pela quase cegueira de Oliveira são o médico Paulo Barição e as enfermeiras Verônica Maria da Conceição e Maria de Fátima Oliveira Castro, equipe que operou as pessoas naquele fatídico 30 de janeiro. Com pressa, fazendo intervenções a cada 10 minutos, e sem a menor higiene, eles praticaram uma ação criminosa, que, ao invés de recuperar a visão, cegou as vítimas. Por causa disso, acabam de ser indiciados por lesão corporal culposa. Foram 14 casos graves, que implicaram na perda da visão de um dos olhos, oito ocorrências gravíssimas, em que foi necessária a retirada do globo ocular, e uma morte que está sendo investigada pela Delegacia do Idoso de São Bernardo do Campo, em São Paulo.

VAZIO Osvaldo Teixeira não consegue mais arrumar emprego após perder a visão do olho esquerdo - “Não sabia que era um mutirão. Quando saí da sala de cirurgia, o médico me disse que havia sido um sucesso”
VAZIO Osvaldo Teixeira não consegue mais arrumar emprego após perder a visão do olho esquerdo – “Não sabia que era um mutirão. Quando saí da sala de cirurgia, o médico me disse que havia sido um sucesso” (Crédito:Andre Lessa/Ag. IstoÉ)

Segundo o inquérito aberto pela Polícia Civil o médico e as enfermeiras do Instituto de Oftalmologia da Baixada Santista, empresa contratada em 2014 pela prefeitura de São Bernardo, foram imprudentes e negligentes ao prestar atendimento. “O médico infringiu diversas normas de higiene”, afirma o delegado Gilberto Peranovich, responsável pelo caso. A bactéria criou resistência à substância utilizada e a partir disso outras irregularidades contribuíram para espalhar a infecção. “A equipe não lavava as mãos, não trocava de avental ao entrar e sair do centro cirúrgico e compartilhava material pericortante entre os pacientes”, afirma o delegado. Diante disso, o inquérito comprovou os crimes de violação ao Estatuto do Idoso, do Código de Defesa do Consumidor e do Código Penal.

O aposentado Expedito Batista, de 66 anos, também ficou cego do olho esquerdo. Decidiu fazer a cirurgia de catarata porque foi reprovado no exame médico, ao renovar a carteira de motorista. “Quando a operação acabou, o doutor me disse que tinha sido um sucesso”, diz Batista. Um dia depois, com uma forte dor no olho e sem poder enxergar, o aposentado foi ao Hospital das Clínicas de São Paulo. Lá, soube que perderia definitivamente a visão por conta da infecção. “Emagreci nove quilos em um mês e sofri muito com o tratamento, parecia que estavam enfiando uma faca no meu olho”, diz sobre as injeções que tomou. “Eu enxergava 70% e hoje perdi tudo. A medicina está muito avançada, mas não para mim.”

DESESPERO O aposentado Expedito Batista, que possuía 70% da visão do olho esquerdo, ficou cego após a cirurgia no mutirão - “Tomei quatro injeções no olho sem anestesia. Era como se tivessem enfiado uma faca”
DESESPERO O aposentado Expedito Batista, que possuía 70% da visão do olho esquerdo, ficou cego após a cirurgia no mutirão – “Tomei quatro injeções no olho sem anestesia. Era como se tivessem enfiado uma faca” (Crédito:Andre Lessa/Ag. IstoÉ)

Cirurgias de catarata são cada vez mais realizadas no País. De acordo com dados do Ministério da Saúde, o número de procedimentos aumentou 59,7% entre 2010 e 2014. Atualmente são realizadas 556 mil operações por ano no Brasil. E essa curva tende a crescer ainda mais com o envelhecimento da população. Rápidos e indolores, os procedimentos não costumam gerar complicações, mas o modelo de mutirão é altamente combatido pela comunidade médica. “O governo está disseminando a estratégia de mutirões de catarata, próstata, mama e diabetes. Isso não funciona, pois as pessoas precisam de uma assistência continuada”, afirma João Alberto Holanda de Freitas, presidente da Sociedade Brasileira de Oftalmologia. “O paciente merece respeito e isso são ‘mentirões’.” O procedimento correto, explica o médico, é que o profissional de saúde peça exames como eletrocardiograma, para verificar o risco de parada cardíaca, glicemia, para observar o nível de glicose no sangue, ureia e creatinina para avaliar a função dos rins.

A dona de casa Rosa Ribeiro Saroa, 62 anos, estranhou a ausência de pedidos de exames antes da cirurgia. “Minha irmã já tinha operado e foi solicitado tudo”, diz. Um dia depois de ter comparecido ao mutirão, conta que vomitou sangue e sua pressão subiu. “Ela ficou muito mal, com o olho totalmente inchado”, afirma a filha Rose Saroa. No dia 3 de fevereiro, a dona de casa se submeteu a uma operação de retirada de retina no Centro Especializado Rudge Ramos. As dores e o inchaço continuaram. “Achei que minha mãe ia morrer”, diz Rose. Ela sobreviveu, mas a rotina mudou completamente. Rosa não consegue arrumar a casa, cozinhar, cuidar dos netos e nem sair às ruas como antes. Ela, que também perdeu a visão do olho esquerdo, usa prótese de retina. Mas reclama que o tamanho não é o ideal. “Continuo sentindo incômodo, está muito grande e ainda estou com os óculos errados”, diz. A prefeitura também prometeu fazer adaptações na casa, mas até agora nada foi feito.

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Para baratear as intervenções cirúrgicas, o governo incentiva as operações em larga escala. “Nenhum hospital pode fazer cirurgia de reparo em 27 pacientes, há uma série de riscos inerentes”, diz Peranovich. Além da esterilização ineficiente, a qualidade dos materiais utilizados também deixa a desejar. Outro ponto a ser discutido, explica o presidente da SBO, é a necessidade de um mutirão de cirurgias em uma cidade vizinha a São Paulo. Segundo ele, a estratégia é recomendável em regiões que carecem de mão de obra médica. Osvaldo Lopes Teixeira, 69 anos, trabalhava como segurança de um clube. Cego do olho esquerdo, diz que não consegue mais arrumar emprego. Com os sintomas relatados pelas outras vítimas, Teixeira parou de enxergar 24 horas depois da cirurgia e foi encaminhado do CERPRO para o Hospital Brigadeiro. De lá, para o Hospital Monumento. “Fiquei muito nervoso, fomos jogados de um lugar para outro”, diz. Diagnosticado com a bactéria pseudmona, diz ter passado por três cirurgias. O desempregado sente dores no olho e em todo o lado esquerdo da cabeça, aplica um colírio a cada 12 horas e diz que nunca mais vai permitir que mexam em seus olhos.

Agora o relatório final da Polícia Civil deverá seguir para a Justiça que analisará a responsabilidade criminal do Instituto de Oftalmologia da Baixada Santista e do Hospital das Clínicas de São Bernardo do Campo. Enquanto isso, a delegacia ainda apura a morte de Pellegrino Foscher Riatto, no dia 20 de fevereiro. A morte está sendo investigada em função do tempo entre a cirurgia do dia 30 de janeiro até o último atendimento, realizado cinco dias depois, no Hospital das Clínicas de São Paulo. As complicações teriam culminado na morte de Riatto. Espera-se da Justiça a condenação da equipe médica e dos responsáveis para que outras pessoas não se tornem vítimas da imprudência e negligência médica dos mutirões (leia box). Nenhuma das vítimas foi indenizada por danos morais até hoje.