Um conta abitanti na praça Campo San Bartolomeo, próxima à famosa Ponte Rialto, computa a queda da população veneziana. Neste dia ensolarado do fim de setembro, o letreiro digital na vitrine de uma farmácia histórica marca 50.582 habitantes. Um mês antes, as autoridades locais anunciaram seus polêmicos planos de instalar portões eletrônicos nos principais pontos de acesso a Veneza, a fim de regular o tráfico turístico.

Antes da pandemia de covid-19, calcula-se que a cidade na Itália recebia 30 milhões de visitantes por ano, o equivalente a 590 turistas para cada residente. Esses números desempenham papel central na erosão do tecido econômico e social local, assim como em seu despovoamento galopante.

As multidões de turistas exercem enorme pressão sobre a já sobrecarregada infraestrutura veneziana. Hospedagens de férias elevam o custo da moradia, e os estabelecimentos independentes voltados à população local lutam para não fechar. Em consequência, uma média de 2,6 habitantes abandona a cidade a cada dia, e a tendência não dá sinais de reverter.

“Estamos perdendo perto de mil cidadãos por ano”, confirma Giacomo Sebastiano Pistolato, que viveu todos os seus 38 anos no centro histórico da ilha. “Neste meio tempo, a cidade está sendo vendida para quem der mais.”

“Catracas transformam Veneza em parque temático”

O sistema municipal combinado de taxas de ingresso, reservas pela internet e instalação de roletas para controlar o acesso turístico foi testado pela primeira vez em 2018, provocando grandes controvérsias. Engavetado devido à pandemia, o plano agora tem implementação marcada para 2022. Para o prefeito, Luigi Brugnaro, essa é a “única solução”. Mas a proposta é altamente impopular e, segundo creem muitos, fadada a fracassar.

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“As catracas são outra tentativa da cidade de defender um modelo impossível de gestão”, critica Pistolato. “É o último passo para transformar Veneza num parque temático”. A administração municipal – cuja jurisdição abarca áreas mais populosas no continente, como Mestre e Marghera – vê o centro histórico de Veneza como “um poço sem fundo de oportunidades econômicas”, afirma o morador.

Isso se traduz numa mentalidade política que coloca soluções de curto prazo e jogadas de propaganda na frente de medidas mais sustentáveis, que beneficiariam os residentes e lhes dariam razões para permanecer. Uma delas seria imaginar alternativas à “monocultura de turismo”.

Para muitos, a pandemia se apresentou como uma oportunidade de testar e planejar novas estratégias e esboçar uma visão para o futuro. “Tivemos tempo e recursos para pensar sobre um novo modelo de turismo, e isso não foi feito”, relatou Monica Sambo, líder do Partido Democrático (PD) na administração municipal, em entrevista ao jornal La Repubblica.

Em vez disso, as autoridades parecem estar mais inclinadas a explorar o potencial de negócios que representa a cidade insular, “é um bocado suculento demais”, ironiza Pistolato. Em consequência, os habitantes não se sentem escutados por seus líderes, e o golfo entre eles e os tomadores de decisões no continente aumenta sem cessar.

Não aos navios de cruzeiro – uma vitória passageira?

Algumas iniciativas, contudo, tiveram impacto duradouro sobre aquela que já foi apelidada “La Serenissima” – mas não graças a qualquer ajuda das autoridades locais. Até meados de 2021, navios de cruzeiro tinham permissão para aportar na Praça de São Marco, uma das locações venezianas mais icônicas e populares.

Diante da pressão da Unesco no sentido de colocar Veneza na lista dos locais históricos ameaçados, o governo italiano em Roma tomou a significativa decisão de, a partir de 1º de agosto, proibir os grandes cruzeiros – com suas infinitas fileiras brancas de deques avarandados elevando-se acima dos edifícios locais – de adentrarem a Lagoa de Veneza.

“É um grande passo à frente”, admitiu Tommaso Cacciari, ativista e porta-voz do comitê No Grandi Navi, em entrevista a uma rádio local. “Mas não é uma vitória definitiva: o decreto governamental prevê pagamento de indenização às companhias de cruzeiros. Mas por que devemos compensar multinacionais financeiras que há décadas têm especulado e vendido a nossa cidade? Elas é que deveriam indenizar os cidadãos de Veneza pelos danos, poluição e exploração que nos acarretaram.”

“Veneza é mais do que monumentos”

Saudando a notícia, na época o prefeito Brugnaro afirmou tratar-se de “mais um passo a favor de Veneza”, a qual assim mostrava ao mundo que “é um modelo universal de sustentabilidade econômica, ambiental e turística”.

De lá para cá, muitos moradores suspeitam que a municipalidade esteja apenas se aproveitando da palavra da moda “sustentabilidade” com o fim de atrair publicidade, em vez de ir a fundo nos reais problemas.


Os venezianos sabem que o prefeito tem propriedades no continente, as quais provavelmente lucrarão com o desvio das rotas de navegação para fora da lagoa. O fato certamente não favorece a credibilidade do conservador no cargo há seis anos – até porque os danos das inundações de 2019 ainda são em parte atribuídos a sua má gestão política.

Em vários pontos de Veneza prosseguem as obras para proteger das enchentes as principais atrações da ilha. “O que precisamos proteger é a identidade da cidade”, rebate Giacomo Pistolato. “E ela não é feita só de monumentos, é feita e vive através de sua gente.”

“Precisamos de uma mudança da narrativa – como conseguir isso, é uma pergunta em aberto”, prossegue o veneziano nativo. “Mas precisamos fazer saber que aqui não é tudo um mar de rosas: há gente real e problemas reais, que nos afetam.”


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