A história de Catarina II, a Grande (1729-1796), parece impossível. Se tivesse redigido um curriculum vitae, ele se pareceria menos com um documento do que uma narrativa fantástica recheada de traições, disputas e guinadas incríveis. Talvez ela só pudesse ter ocorrido na Rússia bárbara do século 18 — a mesma cujo território e supremacia se mantêm hoje,
e que Catarina consolidou.

O historiador inglês Simon Sebag Montefiore vasculha a vida de folhetim da imperatriz na biografia “Catarina, a Grande, & Potemkin”. O livro, com 800 páginas, lançado pela Companhia das Letras, aborda a bizarra ascensão de uma princesa prussiana alçada ao trono de um país estrangeiro que governou com sabedoria, sem abdicar do desejo sexual. Coroada, caçou adversários e conquistou vastos territórios. Uma predadora. Com base no diário íntimo e na correspondência de Catarina, Montefiore afirma que ela antecipou o feminismo em três séculos anos por tomar decisões fundamentais para seu país, refletir sobre governança, trocar cartas com Voltaire o outros enciclopedistas e se servir sexualmente dos cortesãos. Em 28 de julho, na 16ª Flip, Montefiore discorrerá sobre “O Poder na Alcova”, o local que ela elegeu como gabinete.

“Quando era jovem e frágil, Catarina precisou dos homens que lhe deram músculos para tomar o poder. Uma vez no poder, ela os manipulou”
Simon Sebag Montefiore, historiador (Crédito:Divulgação)

Relação aberta

“Catarina está inspirando as mulheres modernas”, afirmou Montefiore à ISTOÉ. “É por isso que Angelina Jolie comprou os direitos do livro para produzir um filme sobre ela. Catarina é um modelo do feminismo.” O ditador Josef Stalin a odiava. “Qual foi o toque de gênio de Catarina II?”, perguntou ao ministro Andrei Jdánov em 1934, e respondeu sem esperar o interlocutor: “Sua grandeza foi escolher o príncipe Potemkin e outros amantes e funcionários talentosos para governar o Estado.” Segundo Montefiore, ela tanto manipulou os homens para governar como foi manipulada por eles, desejosos de fortuna. Durante os 33 anos de reinado, empoderou a alcova: no diário, menciona doze parceiros. Foram mais. “Mas Catarina não era promíscua”, diz Montefiore. “Ela regia o seu coração pela lei da paixão e da fidelidade – pelo menos fidelidade a si própria.”

Roliça, pequena e de olhos azuis faiscantes, era inteligente e charmosa. Não se casou, talvez porque temesse ser deposta pelo eventual cônjuge. Ganhou a reputação de regicida após ter ordenado executar o marido, o tsar Pedro III, para se coroar . Contou para isso com a ajuda do favorito Grígóri Orlov. Com ele, viveu entre 1762 e 1772, e teve dois de seus três filhos — o outro, Paulo, gerou com o nobre Serguei Saltikov,ainda casada com Pedro III. O caso mais duradouro se deu com Grigóri Potemkin (1739-1791), gigantesco oficial que ela promoveu a príncipe, general e estadista. A parceria sexual
e administrativa de 18 anos, até a morte dele, fez de Potemkin um “marido secreto”.

Eles se conheceram no dia da coroação dela, em 1762, e viraram amantes só doze anos depois. A relação, aberta, durou até a morte dele. O arranjo lhes permitiu enfileirar parceiros. Ela o chamava de “Galo Dourado”; ele, de “Matuchka” (Mamãe). Ele seduziu beldades nobres e plebeias, inclusive três jovens sobrinhas. Ela não se reprimia. Quando morreu, seu jovem amante Alexandre Lanskoi, chorou no ombro de Potemkin. “Os cortesãos ouviram os dois uivando de dor”, diz Montefiore.

O legado de Catarina foi ter elevado a Rússia a potência mundial. Seu governo autocrático conta com admiradores até hoje. “Catarina anexou a Crimeia e parte da Ucrânia, bombardeou a Síria, invadiu o Cáucaso“, diz Montefiore. “Em outras palavras, tem ecos fortes na Rússia de Vladímir Putin.”

ENTREVISTA
Simon Sebag Montefiore

Craig Hastings

Por que escrever sobre Catarina e Potemkin?
Foi um trabalho de amor. Admirava os dois e eles foram difamados pela história — ela como ninfomaníaca e ele como um gigolô bufão. Mas poucas pessoas pesquisaram os arquivos sobre eles. Eu me dei conta que eles eram estadistas notáveis, verdadeiros titãs, apesar de seus defeitos.

Catarina e seu “marido secreto” foram modernos ou bárbaros?
Os dois. Catarina e Potemkin foram os governantes mais humanos da Rússia, mesmo se comparados com os lideres russos atuais. Eles eram filhos do Iluminismo. Mas acreditavam na autocracia, como os governantes russos de hoje.

Qual foi a maior realização de Catarina II?
Ela expandiu o território russo, e promoveu a Rússia a uma potência na Europa. Para isso, usou tanto a força como o “soft power” . Fez publicar cartas para promover a civilização na Rússia — e assim ela formou sua coleção de arte.