A Fifa argumenta que um megaevento como a Copa pode trazer melhorias à população do país-sede. Não traz, e é ilusão pensar que regimes autoritários sejam movidos rumo a uma maior abertura só porque o mundo está de olho.Philipp Lahm, ex-capitão do Bayern e da Alemanha campeã mundial em 2014, foi enfático em recente entrevista para o Kicker, o mais prestigiado portal de esportes do país, ao declarar que não pretende viajar ao Catar, preferindo acompanhar os jogos da Copa do Mundo em sua casa pela TV.

Durante a conversa com o repórter, ainda criticou a escolha do emirado como sede do Mundial: "A situação dos direitos humanos num país deveria desempenhar papel preponderante na escolha para sediar um evento como esse. Nesse quesito, porém, o Catar é um dos piores do mundo e cabe questionar quais foram os critérios que afinal determinaram sua escolha", concluiu.

Pano rápido.

A cada ano, milhares de migrantes saem de países mergulhados em crises econômicas, como Paquistão, Índia, Nepal e Bangladesh, rumo aos ricos emirados do Golfo Pérsico, entre os quais o Catar, para escapar da miséria de sua pátria e prover um sustento mínimo para suas famílias que ficaram para trás.

Sonho do migrante por vida melhor logo vira pesadelo

O emirado do Catar ocupa uma área minúscula, de apenas 11,5 mil km², e é um dos Estados mais ricos da região, com suas gigantescas reservas de petróleo e gás natural. Dos seus 2,8 milhões de habitantes, estima-se que 2,2 milhões sejam trabalhadores estrangeiros, que representam 78,6% da população total (Dados do Banco Mundial, 2020).

De 2006 até 2020, a população praticamente triplicou por conta da vinda de trabalhadores estrangeiros alocados em boa parte nas obras da construção civil. Uma vez tendo chegado ao Catar, o sonho do migrante por uma vida melhor rapidamente se transforma num pesadelo: jornadas de trabalho muito longas, acomodações insalubres e anti-higiênicas, insegurança jurídica e extrema dependência do empregador.

A ONG Anistia Internacional publicou um relatório em agosto de 2021 de acordo com o qual morreram aproximadamente 15 mil trabalhadores estrangeiros entre 2010 e 2019, sendo que em 70% dos casos a causa mortis não foi devidamente esclarecida. Vale lembrar que no Catar, em caso de falecimento do trabalhador estrangeiro, não é feita a autópsia para determinar a causa da morte. O Comitê Organizador local da Copa do Mundo alega, entretanto, que até fevereiro de 2021 morreram apenas 34 trabalhadores em obras da construção dos hipermodernos estádios padrão Fifa.

Reformas superficiais e insuficientes

Enquanto as denúncias sobre a violação dos mais elementares direitos humanos no Catar se multiplicavam na mídia, o emirado investiu no ponto fraco de amplos setores do Ocidente: sua venalidade. Entrou em grande estilo no mundo dos negócios bilionários em que se transformou o futebol. Adquiriu direitos de TV para transmissão de jogos de futebol, comprou grandes clubes como Paris Saint-Germain e se tornou o principal patrocinador de outros, como o Bayern de Munique.

Apesar de contínuas promessas da monarquia absolutista do Catar de implementar melhorias nas condições de trabalho dos operários estrangeiros, organizações defensoras dos direitos humanos lamentam que, poucos meses antes do pontapé inicial da Copa, as reformas preconizadas foram feitas de modo superficial e insuficiente, além do que sua efetivação não é controlada por algum órgão governamental e muito menos por agências independentes.

Pelo contrário. Foram denunciados novos casos de retrocessos, especialmente no que se refere à violação sistemática dos direitos humanos: "Na prática, não houve melhoria alguma nas condições de vida dos migrantes", constataram os autores de um relatório recente da Anistia Internacional.

"Futebol deveria ser para todos"

Hansi Flick, técnico da seleção alemã, lamenta os efeitos negativos que estão impactando esta polêmica Copa no Catar e se manifestou no jornal Frankfurter Rundschau: "Tenho muitos conhecidos que gostariam de ir, mas por motivos diversos não viajarão. Preços altíssimos, homofobia inaceitável, violação dos direitos humanos, exclusão de minorias. O futebol deveria ser para todos, mas essa Copa não é para o torcedor comum."

Confrontado pela reportagem sobre a situação no país, Flick declarou: "Uma tomada de posição a esse respeito por parte da seleção nacional será um desafio para todos os envolvidos. Vamos nos reunir agora em setembro e pensar bem no que nós, provavelmente em conjunto com outras seleções, podemos fazer."

Fora as protocolares conclamações de praxe pela confraternização de todos os povos através do futebol, nada mais poderá ser feito. A Fifa adora argumentar que um megaevento como uma Copa do Mundo pode trazer melhorias para a população do país-sede. Não traz, e é ilusão pensar que regimes políticos autoritários possam ser movidos rumo a uma maior abertura lenta e gradual do regime só porque o mundo inteiro está de olho.

Ao fim e ao cabo o dirigente máximo da Fifa, Gianni Infantino, vai confraternizar com patrocinadores e políticos de toda sorte nos camarotes VIP dos estádios construídos à custa de milhares de vidas para comemorar, como ele costuma dizer, "a melhor copa do mundo de todos os tempos".

Para muitos, e especialmente para os operários migrantes que ergueram os luxuosos templos do futebol no Catar, será apenas a Copa da vergonha alheia.

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Gerd Wenzel começou no jornalismo esportivo em 1991 na TV Cultura de São Paulo, quando pela primeira vez foi exibida a Bundesliga no Brasil. Atuou nos canais ESPN como especialista em futebol alemão de 2002 a 2020, quando passou a comentar os jogos da Bundesliga para a OneFootball de Berlim. Semanalmente, às quintas, produz o Podcast "Bundesliga no Ar". A coluna Halbzeit é publicada às terças-feiras.

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