A Festa Literária das Periferias (Flup) realiza em 2020 um processo formativo sobre a obra de Carolina Maria de Jesus, focado em mulheres negras. Com o processo atravessado pela pandemia, as oficinas se tornaram online e receberam cerca de 500 inscrições de 87 cidades do Brasil, de países africanos e da França. A ideia, segundo a produção, é propor reescrituras de Quarto de Despejo no aniversário de 60 anos do livro, e publicar um volume com a produção resultante, selecionada por uma banca de jurados.

Acontece que em uma parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Flup decidiu estender o processo formativo para cooperativas de catadoras de material reciclável, e um grupo de 20 mulheres foi escolhido para compor uma turma. Desde abril, elas participam das palestras e trocam ideias em encontros virtuais, com orientação do escritor Eduardo Coelho. A ideia é, ao fim do processo, publicar um livro com as histórias delas, escritas por elas mesmas. Abaixo, três delas compartilham seus pensamentos e trajetórias.

‘Obra de Carolina e as discussões em grupo tocam na minha alma’

Edilaine Gonçalves, 49 anos, de Santo André

Quando tinha 13 ou 14 anos, na metade dos anos 1980, Edilaine Gonçalves, conhecida como Naná e hoje presidente da Cooperativa de Catadores de Papel, Papelão e Material Reciclável de Mauá, a Coopercata, frequentava a Biblioteca Municipal de Santo André.

Buscando escritos de pensadores para entender matemática, de Sócrates a Descartes (“nunca esqueço ‘o penso, logo existo’, tenho isso guardado dentro de mim”, diz Naná), as leituras logo se espraiaram também para as princesas clássicas, por Monteiro Lobato e também por atualidades.

Depois de um período pulando entre empregos e de um divórcio complicado, Naná passou por uma depressão, e foi na “catança” que encontrou motivação. Com a vida em melhores termos, prestou o vestibular para engenharia ambiental e sanitária, conseguiu uma bolsa de estudos de 85% e agora está no quarto ano do curso na Universidade Estácio, em Santo Amaro.

As histórias de vida de Naná se encontram então com uma emoção singular na sua participação nas oficinas literárias da Flup. Na turma das catadoras, Naná aprende ferramentas não só para colocar sua rica trajetória no papel, mas como um exercício contínuo de alteridade.

“Nas oficinas, não consegui deixar de chorar um dia”, diz. “Todas as catadoras que estão participando têm histórias extremamente marcantes. Essa aproximação com a obra de Carolina Maria de Jesus e com as outras mulheres é uma situação que toca na minha alma. Que toca uma essência que eu nem sabia que existia. Ontem mesmo escrevi duas histórias. Hoje não escrevi ainda, mas vou sentar e escrever. Estou inspirada.”

‘Ela vivia num tempo mais difícil, com ainda mais preconceitos’

Viviane Conceição de Souza, 42 anos, de Guarulhos

Quando Viviane Conceição de Souza, de 42 anos, aceitou a proposta de se juntar às mais de 500 mulheres que se inscreveram no processo de formação da Flup, ela ainda não conhecia a obra de Carolina Maria de Jesus, e o que veio a seguir foi uma revelação. “Fiquei apaixonada”, conta. “Quando comecei a ler, percebi que era uma mulher incrível. Realmente, por ter vivido tanto tempo atrás e relatado essas situações. Com todos os problemas que ela tinha, com tantas dificuldades, a missão de caçar o pão do dia… ela, ainda assim, tinha toda uma esperança de que algo ia acontecer. Ela desenhava e escrevia no dia a dia, sempre visando que não ia ser só aquilo. Pelo menos para os filhos dela foi mesmo diferente.”

A visão de mundo de Carolina não foi o único aspecto com o qual ela se identificou. Catadora há 11 anos, Viviane percebeu nos relatos da escritora a mesma vontade de “querer ir além” que marcou sua vida, desde cedo. “Sempre tive a vontade de procurar estar em outro lugar, não necessariamente físico, mas um lugar melhor na vida.”

Passar a frequentar as aulas virtuais foi um alívio no contexto confuso da pandemia. Um método de escrita já vai se desenhando: Viviane escreve à caneta, rabisca, depois passa para o computador. “Várias coisas que Carolina começou lá atrás hoje já fazemos diferente, no mundo da catação. Ela vivia num tempo mais difícil, sofria mais preconceito, mais machismo, os filhos sofriam mais: hoje não precisamos pegar brinquedo do lixo, com o dinheiro da catação. Conseguimos melhorar. Fico muito emocionada.”

‘É como uma mensagem numa garrafa’

Claudia da Silva, 39 anos, de Ourinhos

Aos 39 anos, a catadora de material reciclável Claudia da Silva hoje enxerga na obra de Carolina Maria de Jesus novos olhares para situações com as quais ela se acostumou. Nascida em Rio das Pedras e criada em Ourinhos, no interior de São Paulo, Claudinha, como é conhecida, vem de uma família envolvida com a catação há mais de uma geração. Ela terminou o colegial e hoje está há 18 anos no movimento de catadores, na cooperativa Recicla Ourinhos.

Trabalho, renda e família: os temas que fazem parte do cotidiano de Claudinha são abordados na forma literária de Carolina, e a catadora, postulante a escritora via oficina da Flup, enxerga nos textos da colega mais antiga “simplicidade e riqueza”.

Nas páginas de Carolina, Claudia diz encontrar ainda uma espécie de guia por questões fundamentais do mundo, mesmo atual – sua vontade nos próximos meses é montar grupos e oficinas em outros locais e repassar os conhecimentos adquiridos adiante. “É interessante que eu vejo a história dela e sei que muitas catadoras fazem isso: escrevem relatos, diários. Eu imagino que Carolina soubesse que deixava algo para frente. É como colocar uma mensagem na garrafa.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.