Em juízo, defesa das vítimas acusa mineradora BHP, ré no processo, de tentar "desafiar a lógica". Afetados esperam que decisão saia até o meio do ano, e indenização pode chegar a R$ 270 bilhões.Nos últimos sete anos, a assessora técnica Mônica Santos, de 39 anos, viajou pelo menos sete vezes a Londres, no Reino Unido. Desta vez, porém, diz que é diferente. Uma das pessoas afetadas pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais, ela veio para acompanhar o último dia de julgamento do caso na corte britânica. "Parece que a justiça vai começar a ser feita", prenuncia.
Mônica é uma das três vítimas que vieram a Londres para acompanhar a semana final do julgamento que analisa a responsabilidade da mineradora anglo-australiana BHP Billiton no desastre ocorrido em 2015. Encerrado nesta quinta-feira (13), o julgamento foi iniciado em outubro do ano passado, após ter sido trazido ao Reino Unido em 2018, e durou 13 semanas.
A última fase, destinada às alegações finais dos representantes da BHP e também dos advogados que defendem os brasileiros na ação, começou no dia 5 de março. Antes, o julgamento teve depoimentos, sustentações orais, apresentação de evidências e testemunho de especialistas.
Foram ouvidas sete testemunhas que trabalhavam em postos-chave da BHP, segundo o escritório de advocacia Pogust Goodhead, que defende os brasileiros, além de dez especialistas, indicados pelos autores e réus. Entre as oitivas e as sessões com especialistas, foram cerca de 210 horas de audiência.
No último dia, a palavra repetida por todos os lados – advogados de defesa, representantes da BHP e vítimas – foi confiança.
"Estamos confiantes com nossa defesa no Reino Unido e nas evidências apresentadas, as quais demonstram que segurança sempre foi prioridade para a BHP e que agimos com responsabilidade", afirmou a mineradora em nota enviada à DW nesta quinta.
"Eu sei que a empresa é um CNPJ, mas atrás de todo CNPJ tem pessoas que estão ali para decidir. Se elas estão ali para decidir e sabiam do problema e sabiam o que precisava ser feito e simplesmente não fizeram, elas precisam pagar por isso", argumenta Santos.
Apesar de estar em Londres, Santos – assim como outras duas vítimas com quem a DW conversou – não pôde entrar na corte para acompanhar a última sessão, por estar vestindo uma camisa em referência ao ocorrido. Nenhum sinal de protesto é permitido dentro da corte. Do lado de fora, ela e outras duas mulheres, mães de crianças que morreram na tragédia, carregavam uma faixa e exibiam o cansaço de uma maratona.
Pela terceira vez em Londres, a técnica de segurança Gelvana Rodrigues, de 37 anos, revelou ansiedade por um resultado. "A única esperança que nós temos hoje é aqui em Londres, porque no Brasil a gente não tem esperança nenhuma. Até mesmo na repactuação as famílias das vítimas fatais não entraram", diz ela, mãe de Thiago, um menino de 7 anos que foi arrastado pela lama e cujo corpo foi encontrado a 100km da própria residência.
Pela segunda vez em Londres desde que o julgamento começou, a dona de casa Pamela Fernandes, de 31 anos, lamentou não poder celebrar o aniversário da filha Emanuelle, morta com o rompimento, que faria 15 anos no próximo dia 30.
"O que eles tiraram de mim, não vão poder devolver. Mas eu acredito que a justiça inglesa vai fazer justiça. É muito além do dinheiro, sabe? É sentir aquela paz no coração de que as coisas foram resolvidas", afirmou.
Como foi o último dia de julgamento
O último dia de julgamento do caso Mariana em Londres começou por volta das 10h. Numa sala lotada, perante a juíza, estavam mais de 30 advogados das vítimas brasileiras e da mineradora, além de familiares dos juristas presentes.
Apenas duas pessoas falaram durante as cinco horas e meia de sessão, os barristers Andrew Fulton e Alain Choo Choy, contratados para argumentar em favor dos brasileiros na corte. Um barrister é um especialista legal independente, contratado pelas partes, e é a pessoa habilitada a fazer argumentações nas cortes britânicas.
A estratégia da defesa dos brasileiros para o último dia foi reforçar, utilizando artigos da legislação ambiental brasileira, que a BHP participava das decisões e tinha conhecimento dos riscos de rompimento da barragem. "A BHP está tentando desafiar a lógica”, chegou a dizer o barrister Alain Choo Choy à juíza.
Choy argumentou que ter um número reduzido de funcionários na operação brasileira, em relação à Samarco, não seria motivo suficiente para eximir a BHP de culpa. "O que importa é o controle legal. […] Isso não retira a participação da BHP na aprovação e revisão do projeto", insistiu.
Os argumentos eram acompanhados por meio de computadores, instalados em frente aos juristas, que exibiam as mais de 500 páginas de documentos com os trechos da legislação brasileira utilizada pela defesa.
À DW, Thomas Goodhead, CEO do escritório que representa os brasileiros, disse que a BHP está tentando ir contra o que diz a legislação brasileira. "A lei diz que qualquer pessoa que seja responsável direta ou indiretamente por um evento poluidor é responsável. Portanto, eles são responsáveis, mas estão gastando centenas de milhões de libras e desperdiçando anos e anos para tentar argumentar o que é efetivamente indiscutível."
"Não importa quanto dinheiro a BHP gaste, não importa quantos escritórios de advocacia sofisticados eles contratem, não tenho a menor dúvida de que ela será condenada aqui", afirmou Goodhead.
Disputa de narrativas em relação a acordo de repactuação permanece
Apesar de as três afetadas diretas pelo rompimento da barragem não terem entrado na corte no último dia de julgamento, o prefeito de Mariana, Juliano Duarte, acompanhou parte da argumentação pela manhã.
O político tem liderado o movimento dos 23 gestores municipais que se recusaram a assinar o acordo de repactuação no Brasil.
"Quando nós, prefeitos, imaginávamos que teríamos uma luz no final do túnel, que esse processo de fato seria encerrado, ficamos totalmente insatisfeitos com os valores que foram propostos", disse sobre o acordo de R$ 170 bilhões com as mineradoras, endossado por 26 municípios.
De acordo com Duarte, Mariana sofre até hoje os impactos sociais e econômicos do rompimento da barragem, com diminuição de receita e aumento de despesas. "Mariana é um município minerador. Com o rompimento da barragem, o imposto da mineração, que é o maior tributo da nossa cidade, parou. E consequentemente, outros impostos vinculados também pararam, já que muitas empresas fecharam as portas", explica.
No fim de fevereiro, Mariana e outras 20 cidades ajuizaram uma ação civil pública, contra a Samarco, a Vale e a BHP solicitando R$ 46 milhões em indenização, alegando que os valores repactuados no acordo são insuficientes. A ação é uma outra frente além do julgamento no Reino Unido.
"A gente tem confiança de que aqui a empresa será condenada e que os valores pleiteados serão infinitamente superiores aos valores que foram propostos no Brasil”, afirma Duarte.
Apesar do descontentamento de alguns municípios, Fernanda Lavarello, diretora de assuntos corporativos da BHP no Brasil, afirmou não haver possibilidade de rever os valores repactuados no acordo nacional.
"O acordo foi fechado, é definitivo. Foi amplamente discutido com várias autoridades, as prefeituras participaram em alguns momentos também das discussões", disse. Segundo a executiva, há recursos que serão alocados mesmo para os municípios que não aderiram ao acordo.
"É um combinado no acordo. A Bacia do Rio Doce vai ser beneficiada pelas ações, tanto as que estão a cargo da Samarco como as que ficaram a cargo do poder público. A gente respeita a decisão de cada prefeito, mas a gente entende que quem aderiu fez uma boa decisão", disse.
BHP anunciou que recorrerá em caso de condenação
Lavarello afirmou estar confiante nas provas apresentadas pela empresa, mas evitou comentar o teor dos argumentos utilizados na corte britânica para se defender das alegações de responsabilidade pelo rompimento da barragem de Fundão. "Respeitamos o processo e é difícil saber o que vai acontecer, mas a gente está confiante nas evidências que foram apresentadas", disse.
Segundo Lavarello, a mineradora irá recorrer caso seja condenada. "A gente vai seguir os protocolos permitidos na justiça britânica. Então, o que tiver ali disponível, de recursos, a gente vai recorrer."
Em nota à DW, a BHP sugere que, mesmo em caso de condenação, os pagamentos às vítimas não sairão antes de 2028. Isso porque o valor da indenização às vítimas ainda terá que ser definido em julgamento previsto para "entre outubro de 2026 e março de 2027". "Em seguida, será necessária uma terceira etapa, ainda não agendada, na qual cada reclamante precisará provar seus danos individuais", afirma a empresa.
"A gente não prevê que esse caso, se for pra frente, termine antes de 2028, 2029 ou até 2030", disse Lavarello.
A BHP diz estar "certa" de que o esforço de reparação em andamento no Brasil desde 2015 "é o melhor caminho para garantir uma reparação completa e justa para as pessoas atingidas e para o meio ambiente".
A mineradora defende o acordo de repactuação feito no Brasil como o "caminho mais rápido e eficiente para o recebimento de indenizações". Ressalta ainda que a Samarco e a Renova, apoiadas pela BHP Brasil e Vale, já indenizaram 432 mil pessoas em nove anos, e que cerca de 200 mil requerentes da ação no Reino Unido já receberam R$ 9,5 bilhões no Brasil.
"A gente entende que soluções feitas pelos brasileiros para os brasileiros são as mais adequadas. Lá [no Brasil], o recurso vai ser todo destinado para população atingida, e não destinado para pagar escritórios de advocacia, como é o caso aqui", afirmou a executiva.
Por que o caso foi julgado na Inglaterra
O desastre de Mariana foi parar na Justiça britânica em 2018. Na época, alegou-se que a empresa anglo-australiana BHP Billiton tinha sede e ações na bolsa de valores britânica, o que justificaria o trâmite internacional.
A BHP era acionista igualitária da Samarco, empresa que controlava a barragem, junto com a brasileira Vale, à época do rompimento, em 2015. A Vale foi incluída no julgamento britânico, mas fez um acordo para ser retirada. Se houver condenação, entretanto, dividirá o pagamento das indenizações com a BHP.
O processo chegou a ser negado inicialmente. Em julho de 2022, a corte britânica aceitou proceder com o caso. A defesa se baseou na legislação ambiental brasileira e em princípios como o de poluidor-pagador, sob o qual quem causou a poluição deve pagar pelo dano causado.
Os advogados dos atingidos alegaram ainda que a BHP exercia "poder de controle, supervisão e influência" sobre as operações da Samarco e que, portanto, a empresa esteve envolvida em decisões que "criaram e contribuíram para os riscos" do colapso da barragem.
A acusação espera uma sentença para meados deste ano. A BHP, porém, diz contar com uma decisão até o final do ano. A indenização, que ainda terá que ser definida em uma segunda etapa, pode chegar a 36 bilhões de libras, cerca de R$ 270 bilhões.
A ação na Inglaterra é movida por 620 mil pessoas, 1,5 mil empresas e inicialmente contava com 46 municípios. Após o acordo firmado entre as empresas e o governo brasileiro ano passado, entretanto, 18 municípios que estavam em causas internacionais, na Inglaterra e Holanda, decidiram sair e aceitar os valores propostos nacionalmente.
O rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, liberou cerca de 44,5 milhões de metros cúbicos de lama tóxica, que percorreu 675 quilômetros, atingiu o Rio Doce e chegou ao oceano Atlântico. Um total de 19 pessoas morreram, incluindo crianças e idosos.