Fiquei esperando para ver se algum político da esquerda comentaria a frase desastrosa que o presidente da Argentina, Alberto Fernández, soltou ontem: “Os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da selva, mas nós, argentinos, viemos de barcos. Barcos que vinham da Europa, e assim construímos nossa sociedade”.

Não houve nenhum comentário, obviamente. Nenhuma menção ao assunto no site ou nas redes sociais de partidos como o PT ou o PSOL.

Alguém duvida que isso se deve ao fato de Fernández ser kirchnerista, ou seja, uma cria do nefasto populismo de esquerda que tanto mal fez à Argentina? Duvida que isso se deve ao fato de Fernández, tutelado por Cristina Kirschner, ser visto como um pólo de resistência ao bolsonarismo e outros movimentos de direita do continente? Lembremos que as lideranças do PT compareceram em peso à posse do presidente do país vizinho, em 2019.

A frase de Fernández traz escancarado todo o “eurocentrismo” que os acadêmicos de esquerda gostam de denunciar. Ela põe os povos “saídos da selva” em inegável posição de inferioridade relativamente aos europeus. Poderia ser citada em qualquer manual sobre o politicamente incorreto.

Ah, mas Fernández pediu desculpas logo em seguida, dirá fulano. Desculpas chochas, convenhamos. Ele diz que os argentinos se orgulham da sua diversidade. Se era isso que desejava expressar, que dissesse da primeira vez. Ele também pede desculpas “a quem se sentiu ofendido ou invizibilizado”- como se todo o problema estivesse no ego frágil de quem se incomodou, e não no seu gracejo estúpido.

Alguém da esquerda poderia ao menos ter passado um esculacho: “Olha aqui, Fernández, se você quer atuar do nosso lado em 2021, precisa deixar de lado esses cacoetes de velho, que acha que pode se safar com piadas sobre a raça e o gênero das pessoas. Não sacaneia, pô! Isso não cabe na política de esquerda do século XXI. Se não quer ou não consegue mudar seu pensamento, ou ao menos se policiar quando fala desses assuntos, APOSENTE-SE.”

Ah, mas esse caso não é nada diante das barbaridades que a direita faz por aí, dirá beltrano. Será mesmo? Diga isso às pessoas que, por muito menos, são canceladas todos os dias nas redes sociais. Diga isso aos crucificados do politicamente correto. Foi só no caso do tiozão de esquerda que deixaram passar.

Mas não tardou nada para que a hipocrisia da esquerda fosse castigada. Tiveram de engolir a zombaria de Jair Bolsonaro, que postou nas redes sociais uma foto sua ao lado de índios brasileiros.

Logo Bolsonaro, que faz de tudo para evitar demarcações de terras indígenas, que retardou o quanto pôde a apresentação de um plano de vacinação para as tribos, que passa a mão na cabeça de garimpeiros e outros invasores de reservas (as invasões mais que dobraram no seu governo).

Pois é: depois da parvoíce de Fernández e do silêncio da esquerda, até Bolsonaro se sentiu à vontade para tirar uma casquinha. O cinismo castigou a hipocrisia.

Tomado em seu conjunto, o episódio demonstra mais uma vez por que a esquerda e a direita brasileiras, cada uma com sua calhordice peculiar, são alternativas intragáveis. Tem de haver uma terceira via.