Saber tirar uma boa risada de momentos inoportunos é uma qualidade essencial a todo cartunista. Prova disso é Rafael Corrêa, quadrinista diagnosticado com esclerose múltipla que agora se aventura no cinema com “Memórias de um Esclerosado”.
Programado para entrar em cartaz a partir do dia 8 de maio, o documentário retrata a relação de Rafael com a enfermidade que o acompanha desde 2010. Degenerativa e sem cura, a esclerose é uma doença autoimune que afeta o sistema nervoso e compromete a mobilidade do autor.
Rafael Corrêa, de 48 anos, é cartunista e autor do personagem de tirinhas “Artur, o arteiro”, que soma dois livros. De 2021 a 2024, publicou tirinhas diárias no jornal Zero Hora e, entre 2010 e 2020, produziu cartuns para o caderno ilustríssima, do jornal Folha de S.Paulo.
Desde que recebeu o diagnóstico, o artista começou a contar sua experiência em forma de quadrinhos autobiográficos, postando tirinhas por meio das redes sociais. Foi então que recebeu a proposta de levar a narrativa para as telonas – a partir daí, ele uniu forças com a cineasta Thais Fernandes para juntar registros e organizar a empreitada.
Com produção da Vulcana Cinema e roteiro de Rafael, Thais e Ma Villa Real, a trama ganhou o prêmio de melhor longa-metragem na 28ª edição do Cine PE, além de melhor roteiro, trilha sonora e ator coadjuvante. No 52º Festival de Cinema de Gramado, a obra também levou os prêmios de roteiro, montagem, desenho de som e trilha musical.
Exibição de ‘Memórias de um Esclerosado’ em São Paulo
Na última quarta-feira, 30, ocorreu a única exibição do filme em São Paulo, projetada no CineSesc, na Rua Augusta. A distribuição dos ingressos foi gratuita e a sessão contou com uma conversa com os diretores Rafael e Thais.
O evento reuniu um público capaz de se identificar com a história, como a reticulista da Maurício de Sousa Produções e ilustradora Maju Bellucci – que compartilha do diagnóstico e área de atuação do autor. Segundo ela, ter acompanhado a trajetória de Rafael a conscientizou de que “não estava sozinha”.
“Nós da arte gostamos de nos expressar por imagens. Eu me identifiquei muito com o quadrinho ‘Memórias de um Esclerosado’ porque ele descreveu o que eu queria falar para os outros, só que em forma de desenho”, afirmou Maju.
Outro destaque fica com Thany e Otto Sanches, mãe e filho que dividem interesse pelo filme – enquanto Otto, de 14 anos, é aspirante a cartunista, Thany possui o diagnóstico de esclerose múltipla.

Ilustração mostra evolução de Rafael junto à doença – Foto: reprodução/redes sociais
Sobre o filme
A obra mistura vídeos antigos e toma liberdades poéticas que ultrapassam os padrões de documentário. No processo de reconstrução de sua memória, Rafael lembra que quando criança matou de forma cruel e sem motivos um sapo, esmagando seu lado esquerdo. Quando os primeiros sintomas da doença paralisam sua mão esquerda – a mão com a qual desenha – e ele passa a acreditar em uma espécie de karma.

Cartaz do documentário ‘Memórias de um Esclerosado’ – Foto: Luma Venâncio/IstoÉ
Apesar de não conseguir espaço nas salas de São Paulo, o longa está confirmado para entrar em cartaz em Caxias do Sul (RS), Curitiba (PR), Florianópolis (SC), Niterói (RJ), Porto Alegre (RS), Ribeirão Preto (SP) e Rio de Janeiro (RJ).
Além de SP, também haverá sessões únicas em Santa Maria (RS) no Arcoplex (10/5); em Maceió (AL) no Cine Arte Pajuçara (15/5); e Belo Horizonte (MG), no Cine Humberto Mauro (31/5).
Em entrevista exclusiva à IstoÉ, Rafael Corrêa contou que os planos para o audiovisual são férteis e que o documentário “Memórias de um Esclerosado” é apenas o começo.
Confira abaixo a entrevista completa:
IstoÉ: O quanto o fato de você ser quadrinista influenciou a forma como o filme foi feito?
Rafael: Logo que eu fui diagnosticado pensei que, como eu sempre fui cartunista, desde criança, tinha ali uma história para contar. Então coloquei em quadrinhos, que era a linguagem que eu dominava mais na época. Nunca tinha trabalhado com cinema, por isso resolvi fazer essa autobiografia em quadrinhos. E, a partir dali, a Thais [Fernandes], que é cineasta e documentarista, entrou em contato comigo.
A gente já se conhecia de antes, já tínhamos trabalhado juntos. Ela mandou e-mail falando ‘vamos fazer um filme sobre isso”. E na hora eu topei, porque sempre quis trabalhar com cinema. Claro que nunca imaginei que eu mesmo ia ser o personagem do meu primeiro filme, né? Mas foi o que a vida trouxe, então eu aceitei e está aí o filme – a partir desses quadrinhos.
Qual a diferença entre se ver representado em quadrinhos e, agora, em cinema? A sensação biográfica muda de um formato para o outro?
R: Sim, principalmente porque no quadrinho eu tenho total domínio. Como sou eu que desenho, posso escolher a fala, sou diretor, roteirista, tudo ao mesmo tempo. Já no cinema, é como se o olhar ficasse mais multifacetado, porque eu trabalhei com a Thais [Fernandes] na direção e o roteiro junto com a Ma [Villa Real] também. Então, são vários olhares. E eu tenho que ceder também. Nos quadrinhos eu decido o que tem que ser feito, mas no cinema tem que ter esse jogo de cintura de saber ceder. Enfim, como arte coletiva, eu não tenho total controle – o que é bom, porque senão ficaria um filme muito próximo do que é o quadrinho, talvez.
Sendo cartunista, você lida muito com o humor. Como essa relação funciona quando se fala de uma doença que, no senso comum, é um assunto ‘mórbido’?
R: Bem, eu sempre fui meio palhaço, né? Desde criança. Toda a minha família, meu pai é muito palhaço. E eu coloquei nos quadrinhos esse humor, mas uso isso na vida também. Então quando eu comecei a fazer o ‘Memórias de Esclerosado’, naturalmente ele saiu bem-humorado, tentando fazer piada do que está acontecendo. É o jeito que eu levo a vida. Então não tem como eu fazer um filme, não tem como fazer um quadrinho, e não levar o humor. Para mim, humor é assunto sério. Não tenho como fugir disso.
Qual foi a parte mais interessante de produzir o longa-metragem?
R: Eu sempre quis trabalhar com desenho animado, que é uma mistura do quadrinho e do cinema. Então ver os meus desenhos, que são estáticos no quadrinho, ganhando movimento foi uma das coisas mais interessantes.
Este ano faz 15 anos desde que você recebeu o diagnóstico de esclerose múltipla. O que mudou na sua forma de lidar consigo mesmo?
R: Fisicamente, tive um declínio muito grande. Em 2010 ainda conseguia caminhar, depois veio a bengala e em 2018 comecei a andar com cadeira de rodas. Então eu vejo meu corpo se deteriorando, a doença avançando. Mas ao mesmo tempo, como artista, como pessoa, eu acho que eu tive mais experiências. Eu tive uma noção maior do que é a vida, do que vale a pena viver. A doença me mudou, acho que eu sou uma pessoa melhor.
O que você gostaria que as pessoas soubessem sobre você?
R: Eu estou entrando definitivamente para o mundo do cinema! Vou buscar fazer meu próximo filme, um curta-metragem, e também uma série de desenhos animados – que estão em fase de roteiro. Quer dizer, o roteiro já está pronto. Agora falta buscar financiamento e tudo mais. Então espere esse novo Rafael voltado para o audiovisual.
E lembro também do ‘Toca Ficha’, que é o meu livro que está para ser lançado. Ele vai estar pronto em maio e à venda no meu site.
*Estagiária sob supervisão