O escritor Mário de Andrade (1893-1945) foi um homem irrequieto – prosador, escreveu romances e contos com a dicção do texto modernista; crítico, apontou caminhos para outros artistas de áreas diversas; pesquisador, viajou pelo Brasil buscando traços folclóricos e musicais de todas as regiões, desconhecidos dos grandes centros. Foi também um importante poeta em busca de uma musicalidade própria. Mas, se houve um meio em que ele conseguia a proeza de reunir todas essas qualidades foi na correspondência que trocou com inúmeros artistas e intelectuais.

Mário foi um missivista profissional, mantendo correspondência simultânea com amigos distintos, gerando um fabuloso acervo de cartas que vem sendo publicado por várias editoras, mas principalmente pela Edusp, que lança agora o sétimo volume de uma série que promete se prolongar por anos. Agora, são cartas que ele trocou com Alceu Amoroso Lima (1893-1983), o maior e principal intelectual leigo católico que, sob o pseudônimo de Tristão de Athayde, foi um dos mais importantes divulgadores do Modernismo, em especial a obra de Mário.

Os dois intelectuais trocaram 56 cartas, de 1925 a dezembro de 1944, dois meses antes da morte de Mário. Mas, o que torna esse material tão essencial é seu teor religioso. “O autor de Macunaíma se abriu com Alceu sobre temas como religião, catolicismo, fé, Igreja Católica, crises existencial e religiosa, dentre outros assuntos mais ontológicos. Ou seja, foi com Alceu que Mário verdadeiramente debateu tais assuntos, pois com outros dos seus interlocutores, Mário apenas tocou de leve nestes assuntos; com Alceu, ao contrário, ele analisou a fundo e tentou (se) entender”, avalia Leandro Garcia Rodrigues, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e responsável pela organização, introdução e notas de Correspondência: Mário de Andrade & Alceu Amoroso Lima.

Rodrigues trabalha nessa troca de cartas desde 2012, quando fazia pesquisa de seu pós-doutorado. Foi nesse período que concluiu que Mário não era ateu, como muito se divulga – inquietações religiosas, na verdade, atormentavam o escritor, geradas principalmente porque ele não aceitava que, no resto do planeta, havia um avanço intelectual, cultural, social e comportamental, enquanto o Brasil vivia preso ao seu atraso. Em seus últimos anos de vida, aliás, um Mário revoltado e deprimido associava os problemas nacionais à religião.

“Mário, em seu final, vivia num profundo vazio existencial que, nos dias de hoje, se chama depressão – tal fato, ele confidenciou e debateu apenas com (a poeta) Henriqueta Lisboa, dentre os seus inúmeros correspondentes”, observa Rodrigues. “Alceu sempre dizia que Mário vivia um ‘profundo drama na alma’. Quando Alceu afirmou que ‘a religião foi o elemento central da vida de Mario’, acredito que ele estava correto, especialmente porque Mário foi muito católico na juventude, pertenceu ao coral da paróquia de Santa Cecília, no centro de São Paulo, foi congregado mariano, mantinha uma vida litúrgica e sacramental.”

Segundo ele, as desavenças do escritor com a religião católica – com a instituição Igreja, em especial – se acentuou nos anos 1930, especificamente com a instauração da ditadura do Estado Novo por Getúlio Vargas, que foi amplamente apoiada pela Igreja.

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“Mário, embora nunca tenha sido oficialmente ligado ao Partido Comunista, sempre teve afinidades ideológicas com o comunismo. O maior problema aconteceu quando ele foi exonerado injustamente do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1938, após uma excelente administração. Quem o exonerou foi o Estado Novo católico, conservador, tradicionalista. Para piorar, no ano seguinte, no Rio de Janeiro, Mário presenciou a extinção sumária da antiga Universidade do Distrito Federal, cujo reitor era o próprio Alceu Amoroso Lima e que justificou a medida por ser a UDF ‘um ninho infestado de comunistas’ – missas foram rezadas em ação de graças pela extinção. Mário foi contra tais atitudes, que tinham Alceu à frente de muitas dessas ações. Creio que isso piorou a sua relação com o catolicismo, mas não retirou de dentro de si a fé, a mística, a transcendência. Ou seja, Mário conseguiu matar a Igreja, mas não matou Deus, e certamente é desta dialética que surge seu drama, o seu entre-lugar como ‘o elemento central da vida’.”

Aproximação

O escritor sentia-se seguro para revelar seu posicionamento, pois acreditava estar diante de um interlocutor intelectualmente preparado, daí sua veemência ao revelar seu questionamento religioso. “Tenho certeza que esta correspondência ajudará na compreensão desta dimensão biográfica de Mário de Andrade”, acredita Rodrigues.

A aproximação entre eles, aliás, aconteceu depois que Alceu, sob o pseudônimo de Tristão de Athayde, começou a publicar em O Jornal, nos anos 1920, críticas elogiosas à obra de Mário. Em janeiro de 1925, o autor escreveu a primeira carta na folha de dedicatória de seu romance A Escrava que Não Era Isaura, enviado ao crítico. Ali, ele agradecia a análise arguta que Alceu/Tristão apresentara de seu Paulicéia Desvairada.

Como fizera com outros missivistas, Mário utilizou a correspondência como uma forma de construção de pensamento, um laboratório de ideias. “Não era apenas troca de notícias e fatos, mas era parte da obra do autor e da construção de inteligência do crítico”, afirma Rodrigues. Na troca de impressões sobre um dos principais romances modernistas, Macunaíma (1928), o ponto central está em Mario não afirmar oficialmente que a falta de caráter do personagem principal está relacionada com a do brasileiro. “O maior ‘encanto’ de Mário foi Alceu ter percebido Macunaíma como sintoma e não símbolo de brasilidade, que era a exata opinião de Mário em relação ao seu herói.”

Se admirava ardorosamente a vivacidade intelectual de Mário, Alceu não reservava a mesma simpatia por outro Andrade, Oswald, também artífice do modernismo brasileiro. As divergências eram estéticas e conceituais. “Esteticamente, Alceu acreditava que Oswald era radical demais na sua criação literária, ao romper com a tradição literária do século 18 de forma vanguardista demais, e de uma hora para outra. Mário, ao contrário, evoluiu na sua criação de forma mais equilibrada e gradual. Alceu dizia que eles eram a direita (Mário) e a esquerda (Oswald) do modernismo, diferentes, porém necessários ao movimento.”

Já ideologicamente, a divergência estava no fato de Oswald ter sido ateu, comunista, filiado ao antigo PCB, e com uma visão radical de esquerda – justamente o contrário do Alceu daquela época, ainda muito conservador, observa Rodrigues.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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