Em tempos de mensagens curtas e e-mails sucintos, é difícil acreditar que já houve uma época em que as pessoas se dedicavam caprichosamente a escrever cartas. Mais que isso: para autores como Samuel Beckett, Henry James, Emily Dickinson e Mário de Andrade, as correspondências eram encaradas como um gênero literário à parte, tão importante quanto o conto ou a crônica. Um novo lançamento inclui Clarice Lispector nessa turma: “Todas as cartas” traz mais de 300 mensagens da escritora brasileira de origem russa, parte do pacote de obras que a editora Rocco publica esse ano em que se comemora o centenário de seu nascimento.

ACERVO Tesouros familiares: mensagens escritas à mão (Crédito:Divulgação)

Do total de textos dessa bela edição que tem mais de 800 páginas, há cinquenta cartas inéditas. Suas reflexões estão divididas em três eixos básicos: as pessoais, ao marido Maury Gurgel Valente e às irmãs mais velhas, Elisa Lispector e Tania Kaufmann; a editores, com comentários técnicos; e para outros escritores, como João Cabral de Melo Neto, Rubem Braga, Otto Lara Resende, Nélida Piñon e Mário de Andrade. Esse terceiro lote é o mais interessante, não apenas por envolverem pessoas públicas, cujas obras também conhecemos, mas porque Clarice aborda com mais profundidade o próprio ofício da literatura. Fruto de extensa pesquisa em diversos acervos públicos e familiares, o lançamento é fundamental para compreender melhor a trajetória de vida da escritora.

Viagens

O livro expõe “as angústias que acompanharam a penosa formação de uma jovem que abraça o destino de ser uma escritora. E de ser mulher em um tempo no qual os caminhos do universo feminino eram extremamente áridos”, escreve a biógrafa Teresa Monteiro no prefácio. Comentários sobre peças, filmes, exposições, concertos e literatura mostram ainda como Clarice acompanhava de perto o cenário cultural de sua época. De Nelson Rodrigues a Simone de Beauvoir, de Guimarães Rosa a Jean-Paul Sartre, nada escapava aos seus olhares atentos. Na área pessoal, há belos recados românticos para o então namorado, o diplomata Maury Gurgel Valente. Já casada, Clarice viveu quase duas décadas no exterior e se correspondeu sempre para manter a relação com a família e amigos. Suas reflexões sobre esse período das viagens são emocionantes. “Viajar como eu viajei é ruim: é cumprir pena em diversos lugares. As impressões, depois de um ano no lugar, terminam matando as primeiras impressões. No fim a pessoa fica ‘culta’. Mas não é o meu gênero. A ignorância nunca me fez mal.” Para a autora, “não existem lugares, existem pessoas”.

Do ponto de vista estilístico, Clarice não se importava com a rigidez das regras gramaticais, característica preservada nessa edição. Seguia o que definia como “sua respiração”, ritmo poético e cadenciado que a acompanhou em toda a carreira. Apesar de ter afirmado que “não sabia escrever cartas”, esse lançamento é um testamento da visão de mundo registrada em documentos extremamente sinceros, uma vez que a autora não sabia que um dia se tornariam públicos. São depoimentos de peito aberto e alma revelada, elementos a mais que ajudam a compor o complexo mosaico da vida e obra de Clarice Lispector.

Lançamento

“Todas as Cartas” Clarice Lispector

Prefácio: Teresa Montero
Posfácio: Pedro Karp Vasquez
Pesquisa e transcrição: Larissa Vaz
Preço: R$ 119

PREZADOS COLEGAS

João Cabral de Melo Neto
“Cada vez mais acho, como você, que romance não é literatura. Era preciso fazer uma coisa nova, João Cabral, não a bem da literatura, a bem da vida, era preciso espiar de outro modo. Saio de sua poesia com um sentimento de aprofundamento da vida.”

Mário de Andrade
“O fato de o senhor não ter criticado meu livro serve evidentemente de resposta, e eu a compreendo. No entanto, gostaria de bem mais do que o silêncio, mesmo que para sair dele sejam necessárias certas palavras duras. Peço-lhe que interprete minha carta como quiser, mas não veja nela falsa humildade.”

Fernando Sabino
“Talvez seja orgulho querer escrever, você às vezes não sente que é? A gente deveria se contentar em ver, às vezes. Felizmente tantas outras vezes não é orgulho, é desejo humilde.”