Ele também se chamava Michelangelo, mas o mundo o conhece como Caravaggio (1571 – 1610). Para mim, Caravaggio é enigmático, fascinante, rebelde e perigoso. Ele fez sucesso na cena artística de Roma por volta de 1600 e, a partir daí, nunca faltaram encomendas ou patrocinadores, apesar do seu estilo revoltado e briguento, sempre a postos para uma disputa de força com quem o desafiasse.

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Caravaggio revolucionou a arte no século 17 com o uso melodramático de fortes contrastes de luz e sombra. Aliás, se não fosse pelas brigas, Caravaggio teria certamente vivido mais e não seria obrigado a pagar por seus pecados em vida. Em 1606, foi acusado de assassinar um homem e teve que fugir de Roma, pois sua cabeça estava a prêmio. Isolou-se em diversas cidades, incluindo Malta. Percorri muitos museus atrás de suas obras e cheguei a ir duas vezes para Malta, um local meio fora dos circuitos turísticos, apenas para visitar a Igreja de São João, que reúne um belo acervo do artista. Localizada em La Valetta, a co-catedral foi construída pelos Cavaleiros de S. João entre 1573 e 1578. Seu interior foi decorado no auge do período Barroco, então, está repleto de rococó, com figuras, colunas e estátuas do período.

O que mais me fascina no local é a obra “A Decapitação de São João Batista” (1608), o único quadro que o pintor assinou em sua carreira. Trata-se de uma obra enorme (3,61 x 5,20m) e chama a atenção pelo impressionante estilo de “Claro e Escuro” (Chiaro-Scuro), com um feixe de luz iluminando a cena de capitação do santo a pedido de Salomé. Outra pintura que adoro é “São Jerônimo” (1607–1608), hoje integrante do acervo da Galleria Borghese. Ainda não encontrei nenhum museu italiano sem um quadro homenagem a este santo, uma vez que ele se sacrificou para traduzir a bíblia para o latim. Dada sua importância para a Igreja Católica, São Jerônimo deve ser o santo mais desenhado da história, mas dentre todas, a obra de Caravaggio é a mais bonita do mundo.

Falando de obras impressionantes, é de Caravaggio a “Medusa”, que fica na Galeria degli Ufizzi, de Firenze (Itália). Foi pintada em um escudo que foi apresentado a Ferdinand I de ‘Medici, que era o duque da Toscana na época. Diz a lenda que é preciso fugir porque se os olhos da Medusa cruzarem com os seus, você irá virar pedra. A sala onde fica a obra é uma das mais visitadas e, portanto, uma das mais fiscalizadas por seguranças. Minha diversão toda vez que visito este museu é esperar um momento para estar absolutamente sozinha na sala e fotografar a obra sem ninguém ao meu lado. A tarefa não é fácil, devido à quantidade de pessoas, mas tenho a sensação de que são eternos os poucos minutos que consigo estar sozinha para ser petrificada pelo olhar da Medusa. E lá eu fico até a agitação da sala me chamar de volta dos meus pensamentos.

Caravaggio nasceu em Milão, mas sua família saiu da cidade em 1576 para escapar de uma praga que devastou a cidade (seria como uma ida ao interior em tempos de Covid-19). Com apenas treze anos, foi aprendiz da pintora Simone Peterzano, que por sua vez era uma das discípulas de Ticiano, um dos principais representantes da escola veneziana no Renascimento.

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Caravaggio levou uma vida tumultuada e só não teve mais problemas porque era protegido por seus patronos. Foram as brigas que o fizeram fugir de Milão para Roma em meados de 1592, sem dinheiro, quase como um indigente. Poucos meses depois, conseguiu se estabelecer ao trabalhar para Giuseppe Cesari, o pintor favorito do Papa Clemente VIII. Pintava flores e frutas em um ritmo tão acelerado, que parecia uma fábrica de quadros. O tema natureza morta o motivou a produzir nessa época obras como “Menino Descascando uma Fruta”, que é sua primeira pintura conhecida, “Menino com uma Cesta de Frutas” e o “Jovem Baco Doente”, depois interpretada como um autorretrato.

Caravaggio aproximou-se de Prospero Orsi (que o apresentou para importantes colecionadores), do arquiteto Onorio Longhi (que o introduziu no mundo das brigas de rua) e Mario Minniti (que serviu por um tempo de modelo e depois tornou seu ajudante). O realismo marcante de suas obras chamou a atenção do cardeal Francesco Maria Del Monte, um dos principais conhecedores de arte na Roma antiga e que se tornou um grande fã do ambiente homoerótico do pintor. De olho no dinheiro, Caravaggio abraçou os temas religiosos e acabou desabrochando sua espiritualidade, mas mantendo o seu sarcasmo. Pintou “Madalena Arrependida” no momento no qual ela deixa sua vida de cortesã, mas substituiu o ar religioso por uma jovem sentada próximo ao chão, com suas joias espalhadas ao seu redor, como se estivesse dormindo, sem arrependimento, sofrimento ou promessa de salvação.

Quem tiver a chance de ir para Roma, recomendo uma visita à Igreja de San Luigi dei Francesi, que abriga duas importantes obras de Caravaggio: o “Martírio de São Mateus” e a “Chamada de São Mateus” que são um marco do estilo do artista e de sua forma despojada de pintar, com alta intensidade emocional. Ele preferia sempre produzir suas pinturas da forma mais realista possível, com todas as suas falhas e defeitos naturais. Seu realismo é uma característica notável em seu trabalho e ainda mais impressionante porque marca uma ruptura da pintura italiana tradicional da época.

No caminho religioso, as encomendas cresciam a uma velocidade maior do que ele dava conta de pintar, mas ele abraçava sempre os temas mais cabeludos, como lutas violentas, decapitações grotescas, tortura e morte. A energia era tanta que algumas de suas obras foram rejeitadas por não poderem ser expostas em certos locais religiosos. Embora a intensidade dramática de Caravaggio fosse apreciada, seu realismo era visto por alguns como extremamente vulgar.

Sua primeira versão de “São Mateus e o Anjo”, que apresentava o santo como um camponês careca com as pernas sujas assistido por um menino-anjo comum vestido com roupas leves, foi rejeitada. Uma segunda versão teve que ser pintada como “A Inspiração de São Mateus”. Da mesma forma, “A Conversão de São Paulo” foi rejeitada e uma nova versão com o mesmo assunto, chamada de “A Conversão pelo Caminho de Damasco”, foi aceita, apesar de as patas do cavalo do santo terem muito mais destaque do que o próprio santo.

Pena que morreu jovem, aos 39 anos. Por muitos séculos, a crença é que ele teria se suicidado, mas em 2018 foi comprovado que morreu infectado por uma bactéria (Staphylococcus aureus), contraída por causa de um ferimento que, por sua vez, foi causado por uma briga. Incrível ver como a vida e o trabalho do artista foram impactados pelas brigas, obrigando-o até a sair de Roma para locais como Nápoles, Malta e Sicília.

Torço para que novos artistas brilhantes como Caravaggio ganhem projeção internacional, mas espero que as pessoas vejam exemplos como o dele para procurarem mais equilíbrio. O mundo e a arte estão fartos de brigas. Se tiver uma boa história para compartilhar, aguardo sugestões pelo Instagram Keka Consiglio, Facebook ou no Twitter.


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