INIMIGO ÍNTIMO Doron Kavillio (Lior Raz, à dir): falso treinador de boxe (Crédito:Divulgação)

Se há uma palavra que pode resumir bem o confronto no Oriente Médio entre israelenses e palestinos, essa palavra é “caos”. Sem coincidência alguma, esse também é o nome da melhor série de ação da atualidade. “Fauda”, expressão que significa “caos” em árabe, é um jargão do exército israelense para designar uma operação em que tudo dá errado – como ocorre nessa trama criada e estrelada por Lior Raz, ex-integrante das Forças Especiais de Israel. O co-autor de “Fauda” é Avi Issacharoff, jornalista especializado no conflito. Ao deixar o exército, Raz e Issacharoff juntaram forças e, após uma série de negativas, conseguiram vender o projeto para o canal de TV a cabo Yes. A série estreou em 2015, mas logo passou a ser exibida na Netflix.

A terceira temporada de “Fauda” conta uma história semelhante às duas primeiras: o dia a dia de uma divisão antiterrorismo que se infiltra no território palestino para investigar e evitar atentados em Israel. Aparentemente, a premissa não traz nada de novo. A diferença em relação às séries americanas que estamos acostumados a ver, no entanto, é gigantesca. Depois dos atentados de 11 de setembro, cresceu o interesse nos Estados Unidos por produções ambientadas no Oriente Médio, provavelmente fruto da demanda local por explicações sobre o contexto geopolítico na região. No entanto, filmes como “Guerra ao Terror”, que rendeu o Oscar de Melhor Filme a Kathryn Bigelow, ou “Rede de Mentiras”, de Ridley Scott, simplificam os problemas e mostram de maneira maniqueísta a complexidade da região. Os americanos são sempre os heróis; os árabes são sempre os vilões. Na vida real, nada é tão simples assim – na verdade, a realidade é caótica, como “Fauda” mostra bem. Operações que dão errado, atentados descobertos por acaso; reféns mortos; operações que não se sustentam até a última hora. As vítimas também estão em ambos os lados, tanto os palestinos injustiçados por soldados israelenses violentos, quanto os israelenses vítimas de atentados suicidas. Os dois lados estão sempre errados em “Fauda”, o que dá ao público uma sensação de veracidade que praticamente não existe nas séries produzidas por estúdios americanos. Além dos roteiros realistas, há pelo menos dois elementos que explicam isso. A primeira é a geografia árida e irregular da região in loco, bem diferente da atmosfera dos cenários cuidadosamente “destruídos” de Hollywood. A segunda é o idioma: a série é falada metade em hebraico, metade em árabe. Pode parecer um detalhe, mas não é. Ouvir diálogos nas línguas locais nos remete imediatamente a um Oriente Médio tangível, onde nem os heróis nem os vilões falam inglês.

“CALIFADO” Estado Islâmico: série sueca traz realidade pouco vista no ocidente (Crédito:Divulgação)

Não é de hoje que o ocidente tem atração pelos mistérios do Oriente Médio. “Lawrence da Arábia”, obra-prima dirigida por David Lean, foi um sucesso de bilheteria já na época de seu lançamento, em 1962. Baseado na autobiografia “Sete Pilares da Sabedoria”, de T.E. Lawrence, o filme tem um elenco internacional estelar: além de Peter O’Toole como Lawrence, brilhavam na tela nomes do quilate de Omar Sharif, Alec Guiness e Anthony Quinn. A história real do tenente britânico que lutou ao lado dos árabes para libertá-los dos turcos na Primeira Guerra Mundial é considerado até hoje um dos maiores filmes da história.

“NADA ORTODOXA” Judaísmo radical: baseada em uma história real, série mostra a vida da comunidade em Nova York (Crédito:Divulgação)

Cenário exótico

O mundo mudou muito de lá para cá e mercados como Dubai e Emirados Árabes passaram a se tornar viáveis graças à popularização das plataformas de streaming. Em fevereiro de 2020 foi inaugurada a Netflix Oriente Médio, repleta de produções de locais e com legendas, claro, em árabe. A qualidade das produções locais aumentou, e hoje é possível ver conteúdo de alta qualidade fora do eixo EUA-Europa. A temática também se torna mais interessante quando é vista por meio do prisma local. A série turca “O Protetor”, por exemplo, nos leva pelas ruas de Istambul com um raro sabor local, bem diferente do que seria se fosse filmada por um americano. Há nuances culturais que não se aprendem nas escolas de cinemas. Relações familiares, hábitos gastronômicos, pequenos detalhes que fazem a diferença.

“O PROTETOR” Pelas ruas de Istambul: hábitos culturais
e gastronomia imprimem ritmo original à série turca (Crédito:Divulgação)

A chegada da Netflix e outras plataformas de streaming, como Amazon Prime Video e Starzplay, possibilitou que pequenas produções locais ganhassem o mesmo destaque que as superproduções. Com um roteiro enxuto, a co-produção alemã-americana “Nada Ortodoxa” mostra o dia a dia de uma comunidade judaica radical nos Estados Unidos. Para escapar de um casamento arranjado, a personagem Esty Shapiro foge para a Europa – o modo de vida dos judeus ortodoxos não costuma ser abordado em produções ocidentais. Aqui ele ganha um tempero verdadeiro: a série foi baseada na autobiografia de Deborah Feldman. A série sueca “Califado”, por exemplo, aborda um lado do terrorismo do qual não se sabe muito no resto do mundo: o drama das garotas escandinavas que, influenciadas por células terroristas na Europa, são manipuladas para viajar a locais como Síria e Iraque para se casarem com membros do Estado Islâmico. A série mostra, com incrível realismo, a vida aterrorizante dessas mulheres sob o regime extremista islâmico. É mais uma das várias histórias que não Hollywood ainda não contou.

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ENTREVISTA
Lior Raz, ator e criador da série “Fauda”

“Sou fã de Cidade de Deus”

“Nossa história é baseada em personagens reais, não queremos julgar o outro lado como acontece em diversas séries” (Crédito:David Zimand)

Istoé – Como nasceu a ideia da série “Fauda”?
Lior Raz – Eu era membro das Forças Especiais quando o co-criador da série, o jornalista Avi Issacharoff, fez a pergunta mais importante da minha vida: qual era o meu sonho? Disse que queria escrever sobre as Forças Especiais. Não só sobre o lado militar, mas sobre nossas famílias, amigos, todos que sofrem com nossa vida. Queria também mostrar o lado palestino.

Em “Fauda” não há o ponto de vista americano que estamos acostumados a ver em outras séries. Era sua intenção?
Sim, tentamos ser tão leais à verdade quanto possível.
É ficção, mas baseada em nossa experiência e em histórias e personagens reais. Os dois lados têm fé, coração, sentimentos, famílias. Por isso parece tão verdadeira.

Há um respeito pelos dois lados, o que não é muito comum em séries sobre terrorismo. Você foi criticado em Israel por mostrar o lado humano dos palestinos?
Pensávamos que a direita nos odiaria porque humanizamos os terroristas; e a esquerda, porque mostramos ações amorais do exército. No final, a direita achou que a série era de direita e a esquerda achou que era de esquerda. Muitos árabes dizem que é a primeira vez que sentem compaixão pelo lado israelense e vice-versa. Acho que essa é a magia da série.O jornal israelense Haaretz acusou “Fauda” de não ser “suficientemente política”, mas essa empatia mútua pode, sim, ter um impacto político.

Esse era o seu objetivo?
Não, só queríamos contar uma história, mostrar a realidade sob o nosso ponto de vista e sob o deles também. Não estamos julgando ninguém. Não vejo impacto político, mas espero que ajude a construir uma ponte entre os dois lados.

Como os palestinos e árabes da equipe reagem à série?
Nossos atores palestinos são cidadãos israelenses. Gostam porque mostramos personagens complexos, sem maniqueísmo. Às vezes, sugerem mudanças porque algo não parece correto. Ouvimos e avaliamos. Às vezes, mudamos o roteiro.

Você conhece algum filme ou série do Brasil?
Amamos o povo brasileiro. Somos parecidos, temos o mesmo calor humano.. Sou fã de “Cidade de Deus”, achei incrível, um dos melhores filmes que já vi.

Árabes e judeus vivem em harmonia no Brasil. A paz é possível no Oriente Médio?
Entre as pessoas pode haver amizade, mas enquanto líderes políticos quiserem seguir lutando, lutaremos.

Você vê uma saída para o conflito Israel-Palestina?
Há 75 anos, a Alemanha era nosso maior inimigo. Hoje é um dos maiores parceiros. Se fizemos a paz com a Alemanha, certamente podemos fazer a mesma coisa com os palestinos.

Você está em Israel agora? Como o coronavírus afetou a vida por aí?
Sim, estou em Tel-Aviv. Estamos em quarentena. Todo mundo está passando mais tempo com suas famílias, pelo menos isso é algo positivo.


O que podemos esperar da quarta temporada de “Fauda”?
Eu poderia te dizer, mas então eu teria que viajar ao Brasil e te matar.


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